sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Gaza-Belém-Jerusalém, dezembro

“Perdi a minha casa. A casa da minha família. A casa da minha irmã. A casa do meu irmão. Tudo aquilo a que chamo casa. Estamos num estado horrífico."


Na noite de Natal eu estava na Praça da Basílica da Natividade (Belém, Cisjordânia Ocupada) com o telefone na mão quando chegou um áudio do meu amigo de muitos anos em Gaza, a quem chamei W. na primeira crônica para o PÚBLICO depois de 7 de outubro.

Durante semanas, enquanto eu ainda estava em Portugal, partilhei nas redes sociais mensagens trocadas com W., para que as pessoas tivessem um acesso direto às palavras (e por vezes imagens) dele. W. não estudou jornalismo, vem das ciências, mas é um observador nato, cabeça e coração. Trabalhou comigo em Gaza como tradutor e guia para muitas reportagens neste jornal. Vi as três filhas dele crescer, passei a ficar com a família quando estava em Gaza.

As filhas (e a mãe delas) já moravam noutros países a 7 de Outubro. W. estava na sua casa da Cidade de Gaza, com as sequelas físicas de ter sido preso e torturado pelo Hamas, como contei nessa primeira crónica. Incluindo ter dificuldade para andar. Mas os bombardeios de Israel forçaram-no a deixar a sua casa e ir para sul, como mais de um milhão de pessoas. Passou muito tempo acampado no exterior de um hospital em Deir Al-Balah, a meio da Faixa, com a família da irmã, que ele foi ajudar a tirar dos escombros, depois de um bombardeio. Entre as imagens que me mandou, vi a irmã, tão parecida com ele, cheia de escoriações, e uma das netas dela, sobrinha-neta de W., uma menina linda em estado de choque, também com feridas na cara, e a mão ligada. Ela quase perdeu a mão. Foi operada naquelas condições terríveis, tiraram tecido de outra parte do corpo.adora esta sobrinha-neta e também me mandou alguns dos desenhos que ambos faziam, acampados ali, com tão pouca comida, água, higiene. E depois veio o frio, a chuva, tendas de plástico, sem roupa de Inverno. E mais fome, cada vez mais fome. Desidratação. Doenças. W. decidiu ir a outra zona, Nusseirat, tentar arranjar comida, mas com o avanço da invasão terrestre, além das bombas, não conseguiu voltar para junto da família.

Cheguei a Jerusalém Oriental na noite de 10 para 11 de dezembro e desde então não tive notícias de W. Tentou ligar uma vez, depois não respondeu, desencontramo-nos. Eu não sabia onde ele estava. Se estava.

Nas primeiras semanas da guerra, por vezes a primeira mensagem dele era: “Am still alive” (“Estou vivo”) Como também as mensagens de R., jornalista profissional com quem trabalhei em 2017, a última vez que fiz reportagem em Gaza. Quem siga os palestinos nas redes reconhecerá estas palavras. Os milhões de seguidores, por exemplo, de Bisan, 25 anos, habituaram-se a começar o dia assim. Ela, eles, todas estas pessoas que são a nossa linha de vida com Gaza.

Ou a nossa linha da vida, mesmo.

Então, ao fim de 15 dias sem saber nada de W., aquele áudio caiu ali na noite de Natal, exatamente às 20h03, e pela primeira vez desde 7 de outubro trocamos mensagens estando ambos na Palestina.

Vou transcrever aqui as palavras dele que foram aparecendo no ecrã, mensagem a mensagem:

“Ainda estou funcional. A guerra está no seu auge. Perdi a minha casa. A casa da minha família também. A casa da minha irmã. A casa do meu irmão. Tudo aquilo a que chamo casa. Perdi contacto com aquele meu irmão que não tinha qualquer possibilidade de deixar Gaza. O IDF [Forças de Israel] está deliberadamente a forçar dois milhões e meio à fome e à sede. Estamos num estado horrífico. Figuras como zombies. Ainda estou em Nusseirat. O IDF exigiu que partíssemos daqui, mas o deadline de 72 horas acabou esta noite. Não há transportes, querida amiga. Tentei tudo o que podia para partir ontem e hoje. Vamos ver o que acontece amanhã. Espero conseguir chegar a Deir Al Balah amanhã.”

Quando lhe digo que estou em Belém, e toda a Belém está com Gaza, sem celebrar o Natal, pela primeira vez na sua história, ele responde: “Take care, dear friend.” E promete não perder a esperança. “Never. Inshallah.”

Eram 21h30. Já eu estava junto da incubadora com um Jesus queimado pelas bombas em Gaza que uma artista palestiniana instalou diante da missa de Natal. Não tenho mais notícias de W. até ao momento em que escrevo esta crónica, já em Jerusalém Oriental (Palestina Ocupada), dos lugares mais belos e tristes do mundo. E antes de a terminar, como se adivinhasse, escreve-me R., o outro amigo de Gaza, que há muito não respondia.

Transcrevo as mensagens dele:

“Bombardeio em Maghazi [junto a Deir Al Balah], não muito longe de mim, decidi sair daqui, mas não acho um lugar onde ficarmos. Parece que eu e os meus filhos vamos dormir na rua, não há um lugar em Gaza. Muita gente começou a fugir, estou a tentar, mas não sei para onde ir.”

Quantas vezes já os palestinos disseram isto a alguém, ou teriam dito, se houvesse WhatsApp, a meio de mais um bombardeio, mais um deslocamento, mais um êxodo, desde muito antes de R., W. ou eu termos nascido. E todos já temos cabelos brancos.

A minha última resposta para cada um está só com um tracinho.

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