quinta-feira, 27 de julho de 2023

Por que Neruda é comunista

Em fins de 1943 chegava de novo a Santiago. Instalei-me em minha própria casa, adquirida a longo prazo pelo sistema de financiamento. Neste lar de grandes árvores juntei meus livros e comecei outra vez a difícil vida.

Procurei de novo a formosura de minha pátria, a forte beleza da natureza, o encanto das mulheres, o trabalho de meus companheiros e a inteligência de meus compatriotas.

O país não tinha mudado. Campos, aldeias adormecidas, pobreza terrível das regiões mineiras e a gente elegante ocupando seu Country Club. O jeito era escolher.

Minha decisão causou-me perseguições e minutos estelares. Que poeta podia arrepender-se?

Curzio Malaparte, que me entrevistou anos depois do que vou relatar, disse-o bem em seu artigo: “Não sou comunista, mas se fosse poeta chileno, o seria, como Pablo Neruda é. Há que tomar partido aqui, por causa dos Cadillacs ou por causa da gente sem escola e sem sapatos.”


Esta gente sem escola e sem sapatos elegeu-me senador da república a 4 de março de 1945. Ficarei sempre orgulhoso por terem votado em mim milhares de chilenos da região mais dura do Chile, região da grande mineração, de cobre e salitre.

Era difícil e áspero caminhar pelo pampa. Há meio século não chove nessas regiões e o deserto marcou a fisionomia dos mineiros. São homens de rostos queimados; toda sua expressão de solidão e de abandono concentra-se nos olhos de escura intensidade. Subir do deserto até a cordilheira, entrar em cada casa pobre, conhecer as tarefas desumanas, e sentir-se depositário das esperanças do homem ilhado e submergido não é uma responsabilidade qualquer. No entanto minha poesia abriu o caminho de comunicação e pude andar e circular e ser recebido como um irmão imorredouro por meus compatriotas de vida dura.
Não me lembro se foi em Paris ou em Praga que me sobreveio uma pequena dúvida sobre o enciclopedismo de meus amigos aí presentes. Quase todos eles eram escritores ou, no mínimo, estudantes.

– Estamos falando muito no Chile – disse-lhes – seguramente porque eu sou chileno. Mas vocês sabem alguma coisa de meu longínquo país? Por exemplo: em que veículos nos transportamos? De elefante, de automóvel, de trem, de avião, de bicicleta, de camelo, de trenó?

A resposta muito a sério da maioria foi: de elefante.

No Chile não há elefantes nem camelos. Mas compreendo que pareça enigmático um país que nasce no gelado Polo Sul e que chega até as depressões salgadas e desertas onde não chove há um século. Tive que percorrer esses desertos durante anos como senador eleito pelos habitantes daqueles ermos, como representante de inumeráveis trabalhadores do salitre e do cobre que nunca usaram colarinho nem gravata.

Entrar naquelas planícies, enfrentar aqueles areais, é entrar na Lua. Essa espécie de planeta vazio guarda a grande riqueza de meu país, mas é preciso tirar da terra seca e dos montes de pedra o adubo branco e o mineral vermelho. Em poucos lugares do mundo a vida é tão dura e ao mesmo tempo tão desprovida de qualquer indulgência para vivê-la. Custa sacrifícios indizíveis transportar a água, conservar uma planta que dê a flor mais humilde, criar um cachorro, um coelho, um porco.

Venho do outro extremo da república. Nasci em terras verdes, de grandes arvoredos selváticos. Tive uma infância de chuva e neve. Só o fato de enfrentar aquele deserto lunar significava um sobressalto em minha existência. Representar no parlamento aqueles homens, o seu isolamento, suas terras titânicas, era também uma empresa difícil. A terra nua, sem uma só erva, sem uma gota de água, é um segredo imenso e esquivo. Sob os bosques, junto aos rios, tudo fala ao ser humano. O deserto, ao contrário, é incomunicativo. Eu não entendia seu idioma, quer dizer, seu silêncio.

Pablo Neruda, "Confesso que vivi"

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