quarta-feira, 8 de junho de 2022

Uma joaninha na guerra da Ucrânia

Muitas vezes, passeando pelas cidades onde vivo, ou onde estou de passagem, sou atingido na cabeça por falas perdidas. Esta manhã, por exemplo, quando saí para comprar os jornais, escutei uma menina conversando com o namorado:

— Nestes dois últimos anos não sinto que esteja a viver de verdade. Tenho a sensação de que estou dormindo… 

Acontece o mesmo comigo. Acordo, leio as primeiras notícias no celular, e fico esperando acordar de novo — dessa vez a sério. Estou sempre à espera de acordar em algum lugar mais lúcido, mais iluminado, onde toda a violência seja um escândalo terrível.


Escrevo esta coluna tendo diante dos olhos uma figueira-dos-pagodes, cujo nome científico,
Ficus religiosa, remete a uma velha lenda, segundo a qual Sidarta Gautama, o Buda, teria atingido o despertar espiritual enquanto meditava à sombra rendilhada de uma destas árvores. Fico pensando como olhará para mim a figueira-dos-pagodes. Talvez a realidade a que ela e restantes plantas têm acesso seja mais lúcida do que a nossa. 

Há seis ou sete anos, conheci em Lisboa um treinador pessoal alagoano, chamado Sérgio, de quem fiquei amigo, e com quem passei a malhar. Poucas semanas após a invasão da Ucrânia, Sérgio decidiu abandonar a vida confortável que levava em Portugal, para combater contra os militares russos. Como tem larga experiência militar, porque durante alguns anos integrou a Legião Estrangeira Francesa, foi imediatamente incorporado. Durante semanas, ganhou o hábito de me enviar pequenos vídeos, que ia fazendo com o celular, mostrando o seu dia a dia no contexto da guerra. 

Num desses vídeos, filmado numa trincheira, na frente de batalha, Sérgio mostra uma joaninha passeando na sua mão esquerda. Gritos ao longe, ecos de explosões, o crepitar de armas automáticas, acrescentam à imagem uma inquietante camada de estranheza e melancolia.

— O que significa isto? — Perguntou-me Sérgio, referindo-se à joaninha.

Disse-lhe que as joaninhas são um poderoso símbolo de renascimento. Quando reaparecem, isso pode significar que terrenos antes envenenados devido à utilização abusiva de agrotóxicos estão, pouco a pouco, despertando para a vida.

Alguns dias após ter-me enviado o vídeo da joaninha, Sérgio decidiu retornar a Portugal. Continua determinado a apoiar o povo ucraniano, mas agora por meios pacíficos — quer correr quatro mil quilômetros, de Lisboa até Kiev, para ajudar as crianças órfãs de guerra. 

Interrompo a escrita desta coluna para contemplar a figueira-dos-pagodes. Volto a pensar em como será a realidade apreendida por ela. Em primeiro lugar, uma figueira-dos-pagodes habita um tempo muito mais dilatado do que o nosso. Provavelmente, olhará para nós, a frenética Humanidade, com o distanciamento crítico de quem atravessa os dias como se fossem horas, e os séculos como se fossem décadas. Ela está enraizada simultaneamente no passado e no futuro. Há de ver uma soma de erros e de absurdos. Espero que também consiga ver o Buda despertando à sua sombra; espero que consiga ver, em algum dia distante, a Humanidade despertando como o Buda. 

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