— Nestes dois últimos anos não sinto que esteja a viver de verdade. Tenho a sensação de que estou dormindo…
Acontece o mesmo comigo. Acordo, leio as primeiras notícias no celular, e fico esperando acordar de novo — dessa vez a sério. Estou sempre à espera de acordar em algum lugar mais lúcido, mais iluminado, onde toda a violência seja um escândalo terrível.
Há seis ou sete anos, conheci em Lisboa um treinador pessoal alagoano, chamado Sérgio, de quem fiquei amigo, e com quem passei a malhar. Poucas semanas após a invasão da Ucrânia, Sérgio decidiu abandonar a vida confortável que levava em Portugal, para combater contra os militares russos. Como tem larga experiência militar, porque durante alguns anos integrou a Legião Estrangeira Francesa, foi imediatamente incorporado. Durante semanas, ganhou o hábito de me enviar pequenos vídeos, que ia fazendo com o celular, mostrando o seu dia a dia no contexto da guerra.
Num desses vídeos, filmado numa trincheira, na frente de batalha, Sérgio mostra uma joaninha passeando na sua mão esquerda. Gritos ao longe, ecos de explosões, o crepitar de armas automáticas, acrescentam à imagem uma inquietante camada de estranheza e melancolia.
— O que significa isto? — Perguntou-me Sérgio, referindo-se à joaninha.
Disse-lhe que as joaninhas são um poderoso símbolo de renascimento. Quando reaparecem, isso pode significar que terrenos antes envenenados devido à utilização abusiva de agrotóxicos estão, pouco a pouco, despertando para a vida.
Alguns dias após ter-me enviado o vídeo da joaninha, Sérgio decidiu retornar a Portugal. Continua determinado a apoiar o povo ucraniano, mas agora por meios pacíficos — quer correr quatro mil quilômetros, de Lisboa até Kiev, para ajudar as crianças órfãs de guerra.
Interrompo a escrita desta coluna para contemplar a figueira-dos-pagodes. Volto a pensar em como será a realidade apreendida por ela. Em primeiro lugar, uma figueira-dos-pagodes habita um tempo muito mais dilatado do que o nosso. Provavelmente, olhará para nós, a frenética Humanidade, com o distanciamento crítico de quem atravessa os dias como se fossem horas, e os séculos como se fossem décadas. Ela está enraizada simultaneamente no passado e no futuro. Há de ver uma soma de erros e de absurdos. Espero que também consiga ver o Buda despertando à sua sombra; espero que consiga ver, em algum dia distante, a Humanidade despertando como o Buda.
Interrompo a escrita desta coluna para contemplar a figueira-dos-pagodes. Volto a pensar em como será a realidade apreendida por ela. Em primeiro lugar, uma figueira-dos-pagodes habita um tempo muito mais dilatado do que o nosso. Provavelmente, olhará para nós, a frenética Humanidade, com o distanciamento crítico de quem atravessa os dias como se fossem horas, e os séculos como se fossem décadas. Ela está enraizada simultaneamente no passado e no futuro. Há de ver uma soma de erros e de absurdos. Espero que também consiga ver o Buda despertando à sua sombra; espero que consiga ver, em algum dia distante, a Humanidade despertando como o Buda.
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