Testemunhamos um eclipse lunar no dia 15 deste mês, com ápice na madrugada do dia 16. Ele me levou ao ano de 1961, quando, em 26 de agosto, meu companheiro Julio Cezar Melatti (hoje professor emérito da Universidade de Brasília) e eu — ambos na casa dos 20 anos — éramos iniciados no trabalho de pesquisa antropológica e sérios, mas inocentes, tentávamos compreender o estilo de vida de “índios” regionalmente chamados de gaviões, um grupo de língua jê timbira, na Amazônia paraense.
A Wikipédia informa que “o eclipse lunar de 26 de agosto de 1961 foi um eclipse parcial, o segundo e último de dois eclipses lunares do ano. Teve magnitude penumbral de 1,9330 e umbral de 0,9863. Duração total de 186 minutos. A Lua estava quase coberta pela sombra da Terra num eclipse parcial muito profundo, que durou três horas e seis minutos. Com 99% da Lua na sombra no eclipse máximo, foi um evento memorável. (...) Também coincidiu com o perigeu lunar, ponto mais próximo da Terra, deixando a Lua Cheia cerca de 14% maior e um pouco mais brilhante que no apogeu. Ou seja, o eclipse parcial se deu com uma superlua”.
Tal é a linguagem “científica” do fenômeno. Eis, entretanto, o que ouvi dos nativos e transcrevi no meu diário de campo:
— A outra grande experiência — escrevi — foi um eclipse da Lua. Já estávamos dormindo, quando fomos acordados por Pembkui, que, como toda a aldeia, dizia que Katire (Lua) havia morrido! Quando ela chegou na minha rede, falou em tom patético: “Lua morreu!”. Imediatamente me levantei e comentei com os homens que, ao que parece, esperavam minha opinião. Quando notaram que concordava, Apororenum e Kaututere saíram de casa e, ao lado dos outros, com achas de lenha cujas pontas estavam em brasa nas mãos, cantaram e oscilaram as achas incandescentes em direção à Lua. Eram canções que chamavam a Lua zangada Lua de volta — (hoje vou ver se tomo nota da letra); e, quando tudo acabou, Kaututere prometeu caçar para Katire muito porco, veado, anta e outros animais... Apororenum explicou que, se a Lua morrer, tudo morria, pois, no escuro, sem Sol e Lua, eles comeriam gravetos. O fogo não acenderia e não haveria caça, pois, sem luz, nós ficamos igual a Megaron (alma dos mortos). Hoje vou me aprofundar mais. O fato é que foi uma experiência fabulosa. Depois fomos dormir e de madrugada acordei novamente, desta vez com o maracá e a cantiga de Apororenum. Hoje vou caçar para Katire.
Eis, num texto telegráfico, duas visões de um eclipse e um exemplo de como o humano engloba tudo entre os “índios”.
Esse englobamento de Lua e Sol, bem como de estrelas, pelo cultural tem inspiração no trabalho de Viveiros de Castro, cuja obra tem posto no devido lugar a oposição entre natureza e cultura de modo antropológico — relativizando a dualidade que nós, ocidentais, exceto no plano religioso, tomamos como absoluta.
O notável na minha memória dessa extraordinária experiência foi descobrir que a Lua, como o Sol, tem dimensões humanas. A Lua zangada foi a causa do eclipse. E, conforme minhas pesquisas ulteriores entre os timbiras mostraram, Sol e Lua formam um par criativo do mundo.
Desde os anos 1930, quando um etnólogo alemão chamado Curt Nimuendajú viveu com os canelas do Maranhão e os apinayés do Tocantins, sabemos da polarização produtiva entre Sol e Lua, que, além de serem masculinos para eles, têm um elo parecido com o que temos com nossos doadores de mulheres, nossos afins: um elo que permite confiar e desconfiar.
Desse modo, Sol faz e Lua desfaz; mas, diferentemente das polarizações negativas, Lua também faz e Sol desfaz... Sol fez pessoas bonitas e saudáveis, Lua as fez feias e doentes. Quando Sol reclamou, Lua mostrou que um mundo sem diferenças seria um Universo vazio de sentido.
Sabemos que é impossível olhar para o Sol. Já a Lua tem fases. Com mais espaço, poderia facilmente ligar isso a nosso sistema político, cujo dualismo é ranzinza e traiçoeiro. Aqui, porém, temos um exemplo em que os opostos são necessários e positivos.
Roberto DaMatta
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