Faz uns 12 anos, eu acho, alguém teve a ideia de perguntar a um comediante quais eram os limites do humor. Quando deixou de ser possível sacanear gordo, preto, pobre, mulher, loira, puta, pessoa com deficiência, sogra, empregada doméstica, o que restou? Foi aí que parte da humanidade, em um uníssono cheio de brilho, decência, evolução e caráter, resolveu que havia chegado o grande momento. Sim! A hora de tirar sarro dele: o homem branco, magro, hétero, rico e que faz crossfit. Mas o homem branco, magro, hétero, rico e que faz crossfit não parece chateado. Livros, stand-ups, quadrinhos, filmes, seriados, quase todo o Instagram progressista e até novelas batem diariamente nesses tipos. E nós rimos muito. E eles riem também, mas é porque acabaram de clarear ainda mais os dentes e gostam de imaginar, inabaláveis, que de suas bocas saem raios que cegam o restante do planeta.
Como tomaram a decisão consciente de jamais escolher parceiras que perpetuem a chacota merecida para dentro do lar, seguem blindados no ouro indelével do amor materno. As progenitoras, e aqui vai uma crítica a algumas mulheres da época de minha mãe, tratavam melhor seus filhos homens. Vão ser necessários cem anos de massacre jocoso para que a autoestima do homem branco hétero sofra um tantinho. Mas não vamos desistir.
O problema é que, desde quando o primeiro repórter perguntou a um comediante quais eram os limites de humor, milhares de repórteres repetiram a mesma pergunta a milhares de comediantes. E ninguém aguenta mais. A pergunta sobre a baliza de uma piada ultrapassou todas as barreiras e virou a coisa mais sem graça que existe. Então é preciso reformular. É preciso arriscar uma novíssima forma de indagar as fronteiras da comicidade. E eu sugiro, urgentemente, irmos para o extremo oposto: qual o limite da desgraça?
O fulano pode subir num palquinho imaginário, no seu trabalho, e falar que os quatro ovos da dieta o deixam sarado, mas também provocam nele uma imensa quantidade de gases? Poder, ele pode. Mas qual o limite? Porque se ele falar que o cheiro do seu pum fede menos do que “a roubalheira da esquerda” daí não dá mais. É preciso parar essas pessoas.
Porque uma coisa é tirar a Dilma (sempre deixando claro que foi golpe, sim). A outra é tirar a vida de mais de 640 mil brasileiros. Uma coisa era ser um hippie negacionista que dava a vacina tríplice e passava a vida achando que cada espirro do filho era um sinal de autismo. Outra é negar a transfusão de um sangue “vacinado contra a Covid” para um filho morrendo. Uma coisa é defender pluralidade e contratar pensadores da direita, outra é dar espaço para textos que incitam o racismo e, francamente, são mal escritos pra cacete. Uma coisa é defender liberdade de expressão, outra é achar que nazismo pode ser considerado “uma opinião”.
Se há 15 anos existiam “piadas de anão” e isso se provou um absurdo que hoje nos faz querer morrer de tanta culpa e vergonha, como vai ser quando, no futuro, a gente perceber que em 2022 o racismo e o nazismo foram confundidos –até mesmo em manchetes de jornais respeitados– com pautas ou assuntos ou debates? É o retrocesso do retrocesso do retrocesso. É o fundo do poço.
É preciso discutir os limites da desgraça. Talvez seja ok matar uns bichinhos e umas árvores, mas quando foi que destruímos tanto o meio ambiente a ponto de os desastres climáticos se tornarem rotina? Como encarar o fato de que no futuro nossos filhos talvez não tenham nem água para beber? Um jovem preto foi espancado e morto em seu local de trabalho, que continuou funcionando normalmente enquanto o corpo do rapaz estava ali no chão. Quem viu essa foto? Ah, é notícia antiga! Não é, não. Aconteceu de novo ontem e deve ter acontecido agorinha mesmo. Preocupados com os limites do humor, não notamos o quanto já ultrapassamos todos os limites da tristeza.
Nenhum comentário:
Postar um comentário