Qual a diferença entre um comercial e outro? Por que um deles mente e o outro não? A diferença está no alcance da promessa. Alcançar cachoeiras difíceis é algo de pequeno impacto na percepção que alguém tem de si mesmo, da sua vida, da sua personalidade e das suas expectativas.
Quando dizemos a um jovem que ele, comprando um produto X, deixará uma marca no mundo, estamos mentindo sobre seu futuro: quase zero por cento da humanidade deixa alguma marca no mundo —algumas delas péssimas—, ao passo que embutir essa expectativa como estilo de vida tem um custo altíssimo em termos do cotidiano que alguém vive.
Parte da pré-história e da história da nossa espécie foi gasta num esforço descomunal para fazermos a diferença entre realidade e fantasia, por motivos, principalmente, de sobrevivência. Mas essa questão da sobrevivência nos escapa da consciência hoje.
Pavel Constantin |
Por exemplo, nossos ancestrais, idênticos a nós, passaram quase o tempo todo de suas vidas com fome e hoje as maiores frescuras do mundo se relacionam a comida. Só a fartura sustenta a frescura com alimentação.
Quando o mundo faz a guinada que está fazendo, e o marketing assume a liderança das narrativas, assumimos que existem em nós super-heróis, mitos, deuses e deusas, demônios e efeitos sobrenaturais, o que, evidentemente, não existe. Brincamos com danos psicológicos e sociais empacotados pra presente.
O marketing é um retrocesso cognitivo na evolução da espécie. O Homo sapiens sem uma cognição aguçada é como um pássaro com a asa quebrada.
No momento em que o marketing se fez disciplina existencial, passando a vender estilos de vida, identidades sexuais e outras, valores morais, projetos políticos —aqui a mentira é facilmente detectada para quem tem olhos pra ver— e significados para a vida, ele passou a se constituir numa percepção de realidade de alto risco, estragando a capacidade de fazermos a diferença entre fato e ficção. É como se o mundo fosse um eterno Carnaval em que a Quarta-Feira de Cinzas nunca chega.
O capitalismo avançado apenas quer vender. Tendo saturado as sociedades ricas de produtos materiais, ele passa a vender produtos imateriais, e, com esse passo, ele opera uma ruptura metafísica, digamos, em que optamos por viver num mundo em que nós mesmos somos mera ficção — a melhor ficção possível, claro, mas nem por isso, menos irreal.
Todas as realidades psíquicas passam pelo crivo da fantasia e saem do outro lado como a “melhor versão de mim mesmo”. Mentira. Posso me reinventar. Mentira. Deixarei minha marca no mundo. Mentira. A prosperidade é uma questão de assertividade. Mentira: a esmagadora maioria foi, é e continuará sendo pobre.
A maior chance é que você envelhecerá só e que terá tido uma vida absolutamente irrelevante, se a sociologia estiver certa. O arquétipo da mentira aqui é que você seja uma pessoa diferente, especial, única. Mentira. Você é apenas banal. Esse arquétipo tem a parceria dos pais, que são os primeiros a comprar o marketing de “deixar uma marca no mundo”.
Muitos profissionais da área não têm a mínima ideia de tudo isso porque a formação é muito fraca. Munidos de teorias psicológicas miseravelmente comportamentais, reforçam apenas os mecanismos fantasiosos na relação com a realidade e com nós mesmos. Com a entrada do digital, o processo eleva sua agressividade mitológica ao nível da vida privada como mercadoria e do sujeito como commodity.
Por outro lado, o marketing poderia ser de fato “disruptivo” e elevar o nível da reflexão, como alguns profissionais têm tentado, e parar de mentir. Muitos adultos estão ávidos por pessoas que mintam menos para eles. Estão cansados de serem tratados como retardados mentais.
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