quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Brasil: quem paga ‘pra’ gente ficar assim?

O Brasil é um país tão acostumado ao desassossego que difícil mesmo é ter estabilidade por muito tempo. Depois que os militares devolveram a Presidência da República aos civis, em 1985, o período mais estável, tanto do ponto de vista político quanto econômico, se deu entre 1995 e 2010, durante os quatro mandatos dos presidentes Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Observar em perspectiva como conquistamos a estabilidade e por que ela vem sendo ameaçada há quase dez anos é um exercício útil neste fim de 2021, véspera de um ano eleitoral cujo desenlace é impossível antecipar neste momento.

A transição do regime militar para o democrático se deu num ambiente econômico conturbado. A inflação de 1984 chegou a 192,1% e, em 1985, primeiro ano de um governo civil depois de 21 anos de ditadura, esticou para 226%. Depois da longa e profunda recessão de 1981-1983, provocada pelos efeitos da segunda crise mundial do petróleo em sete anos, o Produto Interno Bruto (PIB) voltou a crescer de forma acelerada - no biênio 1984-1985, avançou 5,3% e 7,9%, respectivamente - mas, com inflação naquele nível, nem a turma do IBGE, responsável pelo cálculo das contas nacionais, quis saber de comemoração.


Os últimos ministros do Planejamento e da Fazenda do período militar - Delfim Netto e Ernane Galvêas, entregaram o bastão ao governo civil de José Sarney depois de promover esforço hercúleo para reequilibrar as contas externas. Em 1980, o déficit em transações correntes do Brasil bateu em 8,8% do PIB, caiu para 7% em 1981 e, em 1982, ano da chamada “crise da dívida”, foi a 9,1% do PIB. Era uma situação insustentável para aquele momento e modelo econômico no qual vivíamos.

Quando a soma do saldo da balança comercial (exportações menos importações), dos serviços e das transferências unilaterais de recursos é negativa, tem-se um déficit na conta corrente do país. Déficits, em tese, geram dívidas e estas precisam ser pagas, do contrário, não se tem obtém mais crédito na praça. Por causa de seu modelo econômico, países como a Austrália - os Estados Unidos não contam porque, desde o fim do padrão-ouro (reserva do minério usada como lastro ou limite para emissão de moeda), em 1971, o dólar se tornou “ouro” - acumulam déficits desde sempre e isso não é um tormento porque o que uma economia precisa é de reputação e credibilidade para financiá-los.

O II PND tinha a ambição de transformar a economia brasileira, que em 1973 vinha de um longo e exitoso período de crescimento ininterrupto, batizado de “milagre econômico”, numa ilha de prosperidade em meio à derrocada de todas as economias que, naquela quadra, não possuíam nem moeda forte nem petróleo.

A maioria das medidas visava tornar nossa economia autossuficiente na produção de bens, de forma que não necessitássemos importar coisa alguma. Por quê? Porque, se importássemos, acumularíamos déficits e quebraríamos porque não teríamos, jamais, condições de financiá-los. Para bancar a criação de um Estado “soviético” no Brasil, o país aproveitou o “melhor” da primeira crise do petróleo - empréstimos externos a juros baixíssimos, viabilizado por crédito gerado por excesso de liquidez (petrodólares) na economia mundial - e o “pior” do receituário de alavancagem por parte do setor público - o uso, sem limite ou constrangimento, do endividamento no mercado interno.

O II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), que fechou a economia e criou mais de 300 estatais - isso mesmo, tre-zen-tas - no espaço de apenas cinco anos, fracassara no seu objetivo de isolar o Brasil dos efeitos da primeira grande crise do petróleo (1973). Em 1979, com o início da segunda crise do petróleo, o preço do barril escalou a alturas nunca vistas antes. Dependentes naquela época de petróleo importado, os EUA testemunharam, assombrados, ao vertiginoso aumento da inflação. Com esta beirando 20% em 12 meses, o banco central americano colocou os juros acima disso e a consequência, no caso da economia brasileira e da maioria de seus pares, foi a elevação daquelas taxas de juros “camaradas” cobradas nos empréstimos tomados ao exterior para construir aqui, na América do Sul, a ilha que resistiria a todos os males que viessem do mundo ao qual ela pertence.

Alguns dirão que a medida do fracasso, nesse caso, é inexistente, porque o II PND teve inúmeros méritos; houve boas e más decisões, e que era impossível prever o advento de uma nova crise do petróleo em tão pouco tempo de decorrida a primeira. A impressão que fica é a de que só teria havido fracasso se o Brasil tivesse deixado de existir.

Bem, talvez, enfrentamos crises de toda sorte para lidar com as consequências do PND, quais sejam, a escalada brutal da dívida externa do país; seguida da série de calotes na dívida externa que nos puseram de castigo, sem acesso ao sistema de crédito internacional por mais de uma década; das maxidesvalorizações da moeda nacional em relação ao dólar - para estimular exportações e, assim, o acúmulo de divisas necessárias ao pagamento dos compromissos com o exterior -; do consequente aumento permanente da inflação, que poucos anos depois saiu completamente do controle; da incapacitação do Estado em prover serviços básicos de qualidade e de investir, por exemplo, em obras de infraestrutura, cruciais para atrair investimento privado nos vários setores da economia etc.

Idealizado para o país não passar vexame em suas trocas com o exterior, o II PND nos tornou caloteiros - a escassez de dólares levou o Banco Central a “centralizar” o câmbio, isto é, a decidir que credor seria pago, uma vez que não havia dinheiro para todos. Os japoneses, sócios da Vale e de outras então estatais e responsáveis pela implantação de projeto grandioso no Centro-Oeste, tornando essa região produtora de soja, foram os primeiros a sofrer calote. Jamais nos perdoaram.

Nas quatro décadas seguintes ao II PND, este país estagnou. Alguns economistas chamam o período de “depressão”. De positivo, alcançamos a estabilidade política e econômica, mas ambas estão sob escrutínio desde a gestão Dilma Rousseff (2011-2016).

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