sexta-feira, 13 de agosto de 2021

A contradição entre recordes no agronegócio e fome no Brasil

Após ter deixado o mapa da fome da ONU em 2014, o Brasil tem convivido com um cenário de crescente insegurança alimentar. Nos últimos meses do ano passado, 19 milhões de brasileiros passaram fome, e mais da metade dos domicílios no país enfrentou algum grau de insegurança alimentar. Os dados são de um estudo nacional realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).

O problema tem diversas justificativas, como a inflação que afeta gêneros alimentícios básicos desde o ano passado, o alto índice de desemprego no país e a defasagem do Bolsa Família. Chama atenção, entretanto, que o crescimento da fome no Brasil coincida com um pico na exportação de gêneros alimentícios.


Em junho, o agronegócio bateu mais um recorde ao faturar 12,11 bilhões de dólares com a venda de produtos agropecuários para o exterior. A cifra é 25% maior que os 9,69 bilhões de dólares registrados no mesmo mês do ano passado. A marca recorde também fora superada nos meses de abril e maio.

O centro de pesquisa Agro Global, ligado ao Insper, estima que as exportações do setor devem alcançar 120 bilhões de dólares neste ano, 20% a mais do que em 2020. Tendo se tornado um “fiador” da balança comercial, a agropecuária se tornou o setor mais importante da economia nacional, em processo de desindustrialização desde os anos 1980.

Embora integre a cadeia produtiva do país, o agronegócio é um mercado dominado globalmente por um seleto grupo de multinacionais. Juntas, as empresas ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus controlam 70% da produção, comercialização e transporte de produtos agrícolas. O setor é marcado por sucessivas fusões entre grandes marcas, que aumentam a concentração dos mercados de sementes, agrotóxicos e terras.

Nessa configuração, o foco do agronegócio está no atendimento da demanda global por commodities, que vivem um boom de preços. Os resultados expressivos alcançados pelo setor no Brasil se justificam também pela desvalorização do real, que torna os produtos mais competitivos no exterior.

"Como uma economia capitalista agrícola globalizada que produz commodities, o agronegócio vende para qualquer mercado que puder comprar. Hoje, a população não consegue comprar arroz porque o compromisso econômico do agronegócio é com o mercado internacional", critica o geógrafo Ricardo Gilson, professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).

O arroz, lembrado pelo pesquisador, é um dos itens básicos da rotina alimentar dos brasileiros que mais foi afetado pela inflação, chegando a registrar 70% de aumento nos preços ao longo de 12 meses.

Para o agrônomo Silvio Porto, ex-diretor da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), a principal causa do desequilíbrio no preço do arroz foi o aumento extraordinário da demanda internacional.

"A maioria dos produtores não tem capacidade de armazenagem, e fica dependente da indústria processadora. Para esse setor, não faz diferença vender internamente ou exportar. Resultado: mais de 13% da safra foi para o exterior, gerando esse efeito interno", explica.

A tese de que as exportações têm efeito inflacionário dentro do Brasil é rejeitada por Bruno Lucchi, diretor técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), entidade que representa o agronegócio.

"A exportação não compete com o mercado interno. O problema do custo alto dos alimentos hoje é mundial, devido à alta dos insumos e problemas climáticos severos, como a seca. A venda para o exterior permite que os produtores não aumentem o preço internamente, por compensar as perdas", comenta.

Em participação no Congresso Brasileiro do Agronegócio, em 2018, o então representante da FAO no Brasil, Alan Bojanic, afirmou que o país tem condições para ser o “celeiro do mundo”. Atualmente, o Brasil é o maior exportador de carne bovina e o segundo maior exportador de grãos no mundo.

Internamente, no entanto, a participação do agronegócio na garantia da segurança alimentar é limitada. Embora seja responsável pela maior parte da produção de gêneros alimentícios que integram a rotina alimentar das famílias brasileiras, como carne bovina, milho, arroz e trigo, não há reservas destinadas ao mercado nacional.

Embora movimentos sociais ligados ao campo afirmem que a agricultura familiar responde por 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, o dado é de difícil mensuração, segundo especialistas. Mesmo assim, a importância desse segmento produtivo para a segurança alimentar no país é incontestável.

Dados do Censo Agropecuário 2017-2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a participação da agricultura familiar na geração de receitas no campo foi de 23% do total, percentual inferior aos 38% aferidos pelo mesmo estudo em 2006.

Mesmo enfraquecido, o segmento teve contribuição relevante na produção de hortaliças, frutas e legumes, como alface (64,4%), banana (48,5%) e mandioca (69,6%), além do leite de vaca (64,2%).

Embora o aumento da fome tenha relação direta com os efeitos econômicos da pandemia, a situação já vinha se agravando nos últimos anos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a insegurança alimentar grave estava presente no lar de 10,3 milhões de brasileiros entre 2017 e 2018.

O período analisado reflete os impactos de mudanças nas políticas públicas destinadas à segurança alimentar durante o governo do ex-presidente Michel Temer. Durante seu mandato, entrou em vigor a emenda constitucional que instituiu o teto de gastos públicos.

Nesse contexto, Temer realizou cortes orçamentários drásticos em programas voltados ao incentivo da agricultura familiar reconhecidos internacionalmente. O ex-presidente ainda extinguiu o Ministério do Desenvolvimento Agrário, deixando a agricultura familiar sob o guarda-chuva do Ministério da Agricultura, ocupado por representantes do agronegócio.

Uma das principais políticas públicas voltadas ao incentivo da agricultura familiar foi o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). A iniciativa consiste no repasse de recursos da União a estados e municípios para a compra de produtos de comunidades tradicionais. Os alimentos comprados são repassados à rede socioassistencial e aos equipamentos de nutrição destinados a pessoas em situação de insegurança alimentar.

O impacto do PAA foi tamanho que a Organização das Nações Unidas (ONU) o replicou em países africanos. Todavia, junto com o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), o PAA vem sofrendo com sucessivos cortes. Das 297 mil toneladas de alimentos comercializadas por meio do programa em 2012, o número despencou para apenas 14 mil toneladas em 2019, primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro.

Já o programa Um Milhão de Cisternas, absorvido posteriormente pelo Água Para Todos, sofreu cortes de 95%. Em 2020, no governo Bolsonaro, foi registrado o patamar mais baixo de construção de cisternas pelo programa desde sua criação, há 17 anos, com apenas 8.310 unidades.

"Na vida de uma mulher que precisava acordar cedinho para ir buscar água longe todos os dias, ter uma cisterna do lado de casa é como ganhar na loteria", comenta Gizelda Beserra. A agricultora de 47 anos integra o Polo da Borborema, que reúne 13 sindicatos rurais e 150 associações comunitários no município de mesmo nome.

No semi-árido do Cariri paraibano, o grupo articulado há 25 anos se fortaleceu pelas políticas públicas destinadas à agricultura familiar e a assessoria prestada pela Articulação Nacional de Agroecologia.

"Os programas de apoio à agricultura familiar permitiram ter um excedente maior de produção e a sustentabilidade das famílias. A gente conseguiu reestruturar nossas propriedades, de modo que o jovem não precisava ir embora para cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro. De repente, a gente sai desse cenário e vai para um governo que só fortalece o agronegócio", afirma Gizelda.

De acordo com o Censo Agropecuário 2017-2018, a queda na geração de receitas pela agricultura familiar foi acompanhada por uma redução de 9,5% no número de estabelecimentos rurais classificados dessa forma e 17,6% no total de pessoal ocupado em atividades desse segmento.

O impacto do abandono de políticas públicas exitosas no campo foi mencionado em um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Livre de Berlim sobre a segurança alimentar no Brasil.

"O enfraquecimento destas políticas, reconhecidas mundialmente como ações exitosas que contribuem para a meta de erradicação da fome, sendo importantes impulsionadoras da saída do Brasil do Mapa da Fome da FAO, em 2014, dificulta que os indivíduos mais pobres tenham acesso a alimentos", afirmam os autores.

Ao mencionar os "retrocessos institucionais e orçamentários na agenda da segurança alimentar e nutricional”, os pesquisadores citam a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), uma das primeiras medidas do governo de Jair Bolsonaro.

Dentre as várias dificuldades enfrentadas pelos produtores rurais, uma das mais estruturais e antigas é o acesso à terra. Sem nunca ter passado por uma reforma agrária, o Brasil tem 45% de sua superfície agrícola concentrada em 1% dos estabelecimentos rurais, de acordo com a organização internacional Oxfam.

Especialistas veem um risco acentuado de aumento da concentração de terras com a tramitação do PL 2.633, aprovado na Câmara dos Deputados, conhecido como "PL da Grilagem" por ambientalistas. Entre outros pontos, a proposta permite que médias propriedades consigam a posse de terra sem vistoria presencial.

As mudanças são criticadas pelo geógrafo Ricardo Gilson, professor da UNIR, que enxerga um desvio de finalidade na atuação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) nesse processo.

"No âmbito do Ministério da Agricultura, comandado pelo agronegócio, o Incra apoia o PL da Grilagem, que o enfraquece, e se resume a uma instituição cartorial para legitimar e ampliar a grilagem. Há um esvaziamento total de suas finalidades e a perda da perspectiva de reforma agrária e função social da terra", afirma.

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