quinta-feira, 25 de março de 2021

O presidente busca um álibi

Trezentos mil mortos são uma derrota coletiva tão avassaladora que o país não sabe mais medir, não tem palavras para qualificar. Existe apenas esse luto sobre nós, dia após dia. O que o presidente Bolsonaro fez ontem foi pouco, tarde e enganoso. Ele busca um álibi. Tenta montar uma rota de fuga e chamou quem pode lhe dar cobertura. Convidou apenas os governadores que lhe são próximos. Não convidou o Butantan e a Fiocruz. Os presidentes da Câmara e do Senado podem estar sinceramente envolvidos na missão, o novo ministro pode melhorar o clima no governo, mas a verdade é que o presidente jamais vai liderar um bom plano de coordenação da crise. Porque ele não quer e não sabe.

A reunião de ontem no Planalto foi excludente. Bolsonaro escolheu a dedo os coadjuvantes do seu teatro. Não estava sendo sincero quando disse: “a vida em primeiro lugar”. E isso é possível garantir com base em todas declarações feitas durante um ano inteiro.


A ideia de união contra a crise não tem coerência mínima com o que o presidente fala e faz. Para citar apenas três atos dos últimos dias. Ele encontrou com um grupo de pessoas aglomeradas em frente ao Alvorada, para festejar seu aniversário. Distribuiu fatias de bolo e ameaças de golpe. Um dia depois, declarou que ninguém o havia convencido de que estava errado. Dias antes, havia entrado no Supremo com uma ação contra três governadores, propósito no qual fracassou.

A mudança do presidente é uma encenação. O novo chefe da Secom, o almirante Flávio Rocha, deu outra orientação para a desastrosa comunicação do presidente. Ter um militar, e da ativa, nesse posto é sinal de que as Forças Armadas aceitam se afundar mais um pouco nesse pântano que é o governo Bolsonaro. O primeiro ato dessa gestão foi a oferta sortida de mentiras em horário nobre. O pronunciamento de terça-feira é de fazer corar Pinóquio. “Somos incansáveis na luta contra o coronavírus”, disse o presidente. O mesmo do “e dai?”, do “vai comprar vacina na casa da sua mãe”, o que acusou a imprensa de “histeria" e promoveu incontáveis aglomerações. Bolsonaro nunca lutou contra o coronavírus. Ele agrediu os gestores públicos que o fizeram.

Ontem, era para mostrar que quer combater a pandemia, mas ele não resistiu. “Tratamos também da possibilidade do tratamento precoce, isso fica a cargo do ministro da Saúde, que respeita o direito e o dever do médico off label de tratar os infectados”. Deixando de lado a má construção da frase, o que fica claro é que tratou todos os presentes fora da bula. Não eram líderes de outros poderes. Eram figurantes aceitando o presidente prescrever o oposto do que recomendou, na terça, a Associação Médica Brasileira. Aliás, como demorou a AMB.

Tratamento precoce, como se sabe, é o codinome do charlatanismo, do kit de ineficácia comprovada. O médico Marcelo Queiroga, na primeira entrevista que concedeu como ministro, ajudou a aliviar o ambiente pesado. Só de não haver mais aquela fala sincopada de general dando bronca em recrutas já tornou melhor o clima na entrevista coletiva. Mesmo assim, ele continua tentando se equilibrar entre duas canoas. Se ficar com a ciência, vai ter conflito com o presidente, se continuar fazendo concessões ao presidente, estará em conflito com seu diploma de médico. E ele tem feito concessões. Ontem, criticou o lockdown, apesar de admitir que a crise, desta vez, pegou o país como um todo. “Quem quer lockdown?”, perguntou. A Fiocruz, por exemplo, órgão científico do Ministério da Saúde, recomenda que o país pare por 14 dias. No fim da entrevista, ficou claro que Queiroga não fora informado de mudanças na forma de registro dos óbitos.

A atual defesa da vacinação é diferente de tudo o que Bolsonaro falou contra as vacinas, como comprovam os muitos vídeos com suas falas grosseiras. Mesmo se dermos ao presidente o imerecido benefício da dúvida, é preciso lembrá-lo de que a falta de vacina neste momento se deve exclusivamente a ele e aos erros do seu governo. O Instituto Butantan teve que brigar para produzir as vacinas que hoje encontram os braços dos brasileiros. A Fiocruz teve que superar crises diplomáticas criadas pelo governo. Bolsonaro quer mudar a cena do crime e buscar um álibi que esconda um ano de erros fatais. Erros que nos trouxeram até aqui. Aos 300 mil mortos.

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