O Brasil, ao longo dos anos, conquistou um cantinho no coração de muita gente espalhada pelo mundo. Seja pelo futebol, pela natureza, pela música, pela diversidade, pela democracia. Um país complexo e desigual, mas definitivamente atraente. Era confortável ser brasileiro no exterior.
Os sentimentos agora parecem confusos. Como se houvesse dificuldade em reconhecer aquele que, mesmo distante, parecia tão atraente. A imagem do país perdeu nitidez. O “novo Brasil”, da propaganda oficial, ainda causa estranhamento.
Os primeiros sinais da mudança, aos olhos do resto do mundo, vieram da Amazônia. A destruição gradual da floresta não chegava a ser uma novidade. Mas ela se ampliou tanto nos dois últimos anos que captou de imediato a atenção internacional.
Imagens de florestas em chamas foram distribuídas a todo o planeta, no momento em que cresce o debate sobre o aquecimento global. O dióxido de carbono que subia aos céus da Amazônia, com audiência global, contaminou a imagem do país logo no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro.
A postura do novo governo diante das queimadas contribuiu para aumentar o nível de preocupação com a destruição em andamento. De um lado, um ministro do Meio Ambiente que defendia “passar a boiada” de flexibilização da legislação de defesa ambiental. De outro, o recurso ao discurso de defesa – inclusive militar – da soberania brasileira na região.
Até então o Brasil havia adquirido uma reputação global de preservação ambiental. Havia se tornado presença obrigatória em todos os mais importantes debates globais sobre sustentabilidade e o futuro do planeta. Talvez fosse a única área em que o país havia se tornado um ator de primeira linha.
Pois a rápida expansão das queimadas colocou em dúvida as credenciais do Brasil. A primeira consequência da divulgação das imagens da Amazônia em chamas foi a suspensão, por tempo indeterminado, do acordo de associação entre o Mercosul e a União Europeia.
Pesou, é claro, a tendência protecionista do presidente francês Emmanuel Macron, interessado nos votos de produtores que se sentem ameaçados com a concorrência de produtos sul-americanos.
Mas a resistência do governo francês explica apenas parcialmente a suspensão do acordo. A exigência de produtos amigáveis ao meio ambiente é uma tendência crescente e inexorável dos próprios consumidores europeus. Uma tendência que, naturalmente, exercerá influência sobre os líderes do Velho Continente.
A segunda onda de estranhamento em relação ao Brasil ocorreu depois da divulgação do tamanho do estrago causado no país pela pandemia da Covid 19. Pouco a pouco o Brasil foi se transformando no epicentro da pandemia global.
A rápida expansão do vírus poderia, em outros momentos, ter apenas despertado manifestações de solidariedade em relação ao país. De fato, ocorreram essas manifestações. O que prevaleceu, porém, foi a percepção de que a multiplicação de mortes teve relação direta com a política adotada pelo governo central brasileiro diante da pandemia.
Bolsonaro conquistou manchetes de jornais em todo o mundo ao anunciar que não tomaria a vacina, ao recusar o uso de máscaras de proteção contra o vírus e ao reunir multidões de apoiadores com promessas de que manteria a economia em pleno funcionamento apesar das recomendações científicas de adoção de medidas de distanciamento social.
Também se tornaram notícias em todo o mundo as decisões do governo brasileiro de recusar ofertas de compra de vacinas, como a da Pfizer, e de negar entendimento – depois adotado – para a compra de vacinas do Instituto Butantan, por causa da origem chinesa da tecnologia usada em sua fabricação.
Os erros na condução de política de combate à pandemia foram tantos que a multiplicação do número de mortos acabou fechando fronteiras a brasileiros. Mesmo os que já estavam fora do país encontraram problemas. Não foram poucos os casos de brasileiros que se sentiram discriminados em outros países apenas por virem do país que se tornou epicentro da pandemia.
A terceira onda, mais recente, nasce a partir da percepção de que Bolsonaro pode colocar em risco a própria manutenção da democracia no Brasil. Democracia que tanto ajudou a nutrir o soft power brasileiro e que foi duramente reconquistada, após duas décadas do regime militar que o presidente tanto admira.
A percepção externa desse risco está ligada a declarações ambíguas do próprio Bolsonaro, que repetidas vezes menciona a expressão “estado de sítio” e que há poucos dias questionou se o país estaria pronto para “medidas duras” que ele poderia vir a adotar.
Ele também já alertou, após a invasão do Congresso dos Estados Unidos por fanáticos simpatizantes do ex-presidente Donald Trump, que alguma coisa “muito pior” poderia vir a ocorrer no Brasil, se não for adotado o voto impresso nas eleições de 2022 e o resultado for colocado em dúvida.
Bolsonaro gosta de falar de liberdade. Diz frequentemente, por exemplo, que os governadores que adotam medidas de distanciamento social, para combater a pandemia, estão limitando a liberdade de ir e vir dos cidadãos de seus estados.
Seu chanceler, Ernesto Araújo, segue o exemplo. O ministro falou de liberdade ao defender-se de acusações de que sua política externa teria feito do Brasil um pária internacional, especialmente depois da derrota de Trump.</p>
“O Brasil hoje fala de liberdade através do mundo”, disse Araújo a uma turma de novos diplomatas no Instituto Rio Branco. “Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos este pária”, desafiou.
Araújo poderia explicar seu conceito de liberdade, por exemplo, ao youtuber Felipe Neto, processado pelo governo, com base na antiga Lei de Segurança Nacional, por haver chamado de genocida o presidente Bolsonaro, em virtude de sua má gestão da pandemia.
“O Brasil hoje fala de liberdade através do mundo”, disse Araújo a uma turma de novos diplomatas no Instituto Rio Branco. “Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos este pária”, desafiou.
Araújo poderia explicar seu conceito de liberdade, por exemplo, ao youtuber Felipe Neto, processado pelo governo, com base na antiga Lei de Segurança Nacional, por haver chamado de genocida o presidente Bolsonaro, em virtude de sua má gestão da pandemia.
Poderia conversar também sobre o tema com o sociólogo Tiago Costa Rodrigues e o microempresário Roberval Ferreira de Jesus, que espalharam outdoors em Palmas dizendo que o presidente “não vale um pequi roído”.
Ou ainda bater um papo sobre liberdade de expressão com o ex-governador Ciro Gomes, igualmente atingido por chamar Bolsonaro de genocida. Todos processados com base na Lei de Segurança Nacional, em vigor desde o regime militar.
Nada disso comove os mais fiéis seguidores do presidente, que continuam indo às ruas e à porta do Palácio da Alvorada em defesa do governo e, muitas vezes, de uma intervenção militar que cale de uma vez a oposição.
Esses fiéis seguidores saíram em passeata pelas avenidas de Brasília, no último fim de semana, em comemoração ao aniversário de Bolsonaro. Todos vestidos de verde e amarelo e carregando bandeiras nacionais.
Mais uma vez, imagens como essas soam intrigantes para quem observa o Brasil. Desde que o país se tornou uma potência no futebol, as bandeiras verdes e amarelas que se espalharam por estádios de todo o mundo sempre estiveram acompanhadas de sorrisos, música, alegria e descontração. Agora estão nas mãos de extremistas que desdenham medidas de distanciamento e flertam com a volta do autoritarismo.
Saudades do Brasil.
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