terça-feira, 3 de novembro de 2020

A Europa olha para o Brasil e diz: eu sou você amanhã

No momento que eu começava a escrever esta coluna, o primeiro-ministro do Reino Unido concedia uma entrevista coletiva para anunciar a decretação de um lockdown nacional, segundo ele, como último recurso para tentar deter o progresso da segunda onda de covid-19 que tomou de assalto o país e todo continente europeu. O anúncio, feito com duas semanas de atraso em relação ao alerta original emitido pelo comitê científico do país —conhecido pela sigla SAGE—, marcou uma mudança de 180 graus na posição oficial do governo conservador britânico, que desde o início da pandemia vem sofrendo toda sorte de críticas da mídia local, da comunidade científica e da população pelas falhas monumentais no manejo da crise sanitária no país.

Ao anunciar a reversão da sua posição original contrária à medida, Boris Johnson informou aos britânicos que não havia outra alternativa neste momento a não ser a reinstituição do mesmo tipo de isolamento social rígido, já usado pelo Reino Unido em março passado, para que o país evitasse que a segunda onda da pandemia fosse ainda pior que a primeira. Algumas horas depois desse pronunciamento, os detalhes mais lúgubres, apresentados pelos cientistas do SAGE ao até então relutante primeiro-ministro do que poderia acontecer caso Johnson não realizasse este cavalo de pau político e mudasse de rumo radicalmente, começaram a vazar na imprensa britânica. Na sua edição de domingo, o jornal britânico The Guardian reportou que ao tomar conta que, se um novo lockdown não fosse instituído imediatamente, o país provavelmente teria que converter arenas de patinação no gelo em morgues de emergência para conseguir dar conta do número massivo de fatalidades, além de utilizar o uso de guardas armados nas portas de hospitais públicos que, totalmente sobrecarregados com pacientes e carências de toda sorte, teriam que rejeitar a admissão de novos pacientes à força. Confrontado com este cenário apocalíptico, Johnson finalmente capitulou e se rendeu às recomendações do seu comitê científico e anunciou um lockdown nacional.

Quase que em paralelo, do outro lado do Oceano Atlântico, o cientista mais renomado da força tarefa científica da Casa Branca, o doutor Anthony Fauci, diretor-geral, há 36 anos, do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas e Alergia do governo dos Estados Unidos, e que algumas semanas atrás havia previsto que os EUA atingiriam a marca de 100.000 novos casos diários de covid-19 ainda em outubro, emitiu o seu próprio alerta, numa entrevista ao jornal Washington Post. Segundo ele, os EUA vão sofrer profundamente durante os meses de outono e de inverno com a covid-19 e, muito provavelmente, devido a um aumento considerável de casos, hospitalizações e mortes por todo país.



Exatamente duas semanas atrás, eu usei as minhas redes sociais para alertar sobre a possibilidade de que, tanto a segunda onda europeia, como o novo crescimento descontrolado dos casos nos EUA, poderiam contribuir para o surgimento de uma segunda onda de covid-19 no Brasil nos próximos meses. Somadas as aglomerações produzidas pelo relaxamento das medidas de isolamento social em todo país, bem como pela campanha eleitoral e os dois turnos das eleições e as festas de final de ano, uma segunda onda de casos de covid-19 poderia atingir em cheio o Brasil a partir dos seus aeroportos internacionais, nos primeiros meses de 2021. Alguns dias depois, o Boletim 12 do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus (C4) do Consórcio Nordeste colocou com destaque a sua preocupação com a possibilidade de uma segunda onda de covid-19 no Brasil, identificando os aeroportos internacionais brasileiros como uma enorme vulnerabilidade do país. Este alerta se justifica plenamente uma vez que o espaço aéreo brasileiro internacional permanece aberto neste momento e nenhum protocolo de segurança padronizado tem sido aplicado aos viajantes que chegam ao Brasil, advindos da Europa e dos EUA.

Como é de conhecimento notório que a pandemia de covid-19 chegou ao Brasil no final de fevereiro passado a partir dos nossos aeroportos internacionais, que permaneceram abertos por mais 30 dias, até o final de março, num dos erros mais crassos do manejo da crise perpetrado pelo Governo Federal, o alarme com grande antecedência feito pelo C4 aos governantes do Nordeste brasileiro é necessário para que não só nesta região, mas em todo o país, as autoridades federais tomem as devidas precauções. Estas deveriam incluir não só exigência de comprovante de teste negativo para covid-19, realizado recentemente pelo viajante que chega ao Brasil, como oferta de testagem nos aeroportos e exigência de quarentena de pelo menos 14 dias aos que não pudessem comprovar não estarem infectados com o SARS-CoV-2. No limite, o Brasil já deveria começar a preparar um plano de contingência que incluísse o fechamento do espaço aéreo internacional, caso viajantes infectados provenientes da Europa e EUA fossem identificados nos nossos aeroportos.

Tomados de surpresa com este alarme, alguns gestores responderam ao alerta do Boletim 12 do C4 indicando que os dados atuais não sugerem qualquer risco de uma segunda onda. Todavia, em menos de uma semana este argumento foi por terra abaixo, como mostrou a reportagem de Beatriz Jucá no EL PAÍS. Usando os dados de internação hospitalar por síndrome respiratória aguda grave (a vasta maioria das quais representando casos de covid-19), produzidos pelo grupo de pesquisadores do Infogripe da Fundação Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro, o artigo relatou que sete capitais brasileiras (Aracaju, Florianópolis, Fortaleza, João Pessoa, Macapá, Maceió e Salvador) já exibem claros sinais de crescimento no número de pessoas infectadas nas últimas semanas. Somam-se a estas três outras, Belém, São Luís e São Paulo, que exibiram sinais moderados de crescimento. Apesar destes números não caracterizarem ainda uma segunda onda da pandemia, todos os sinais de problemas futuros estão se materializando no horizonte brasileiro.

Resta saber se, desta vez, o Governo Federal vai se mexer no tempo certo para reabastecer o país com tudo que faltou na primeira onda da pandemia, desde testagem em massa, equipamentos de proteção, máscaras, medicamentos básicos, até a definição de uma mensagem coerente, unificada e transparente para todo o país, ou, ao invés, repetir os mesmos erros primários que nos levaram à maior tragédia humana da história do país, representada por mais de 160.000 mortes em pouco mais de oito meses de pandemia.

No Grupo Escolar Napoleão de Carvalho Freire, onde eu estudei, se dizia que errar uma vez é possível, mas persistir no erro é pura burrice. Infelizmente, eu temo já saber de antemão qual será a atitude do Governo brasileiro em mais esta encruzilhada da pandemia de covid-19. E, neste caso, burrice é o termo mais leve que vem à minha mente para caracterizar uma eventual repetição, em 2021, da tragédia já vivida pelo país em 2020, mesmo depois de o alerta ter sido feito com grande antecedência por um comitê científico de porte como é o C4. Os governantes brasileiros só precisam atentar nas próximas semanas e meses o que vai acontecer no Reino Unido, e com a carreira de Boris Johnson, para terem uma clara medida do enorme preço humano e político que se paga ao se ignorar, uma vez mais, os alertas da ciência nestes trágicos e incertos tempos de pandemia.

Quem avisa, amigo é.

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