Você me desculpe o desconforto da pergunta, mas como tem passado? Como tem passado depois de encarar os olhos baços da onça pintada? Evitou ver as fotos das sobras horríveis da devoração das queimadas, ou por acaso você também chegou a pôr os olhos nas antas carbonizadas, nos cervos dobrados de dor, nos jacarés consumidos feito pau de incenso? Será possível que um pesadelo dê lugar a outro, infinitamente, e nada seja de fato um sonho mau de que a gente possa despertar? Chuva de fuligem, um mar de cinza e carcaça, a terra toda chagada de fogo nas imagens de satélite, e os sons do pânico animal ensurdecidos pelo estalar das matas. Também para você tudo isso já passou do insuportável? Todos esses crimes sem condenados, todos esses ensaios de apocalipse, todas essas podres mentiras oficiais. Na falta de um não-metafórico estancar dessa sangria, sendo o sábado sempre ocasião de esperança para cronistas, sugiro um porre de palavras inflamáveis para amadurecer a nossa raiva, torná-la mais aguda, mais concentrada. Por exemplo, um porre de gritos dos tetéus e de risos das uiaras de Mário de Andrade o dia inteiro, um porre de acicates e açucenas de Waly Salomão noite adentro, para encararmos de novo a onça de olhos baços. Tetéus e uiaras, acicates e açucenas na veia, meu amigo, e a nossa raiva, bem cuidada, sem desperdício, fura o ar, precisa, implacável, veja: é uma flecha besuntada de curare.
Mariana Ianelli
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