Era horrível, gente. Uma pessoa acordava, vivia a sua vida com outra paz de espírito e, na maioria dos casos, não tinha uma conta do psiquiatra para pagar.
Depois, quando a internet chegou, tratei do fenômeno de forma puramente instrumental: era um meio para, não uma forma de vida em si.
Exemplo: o Google é perfeito quando sabemos o que pesquisar. Mas jamais me passaria pela cabeça levar a sério todos os gatafunhos que aparecem na rede como se fossem as tábuas da lei. O ceticismo, que é estimável em qualquer área da vida, é imprescindível na selva virtual.
O mesmo vale para os anúncios personalizados. Os gigantes tecnológicos vendem o meu perfil para que os anunciantes possam tentar-me com uma precisão mefistofélica? Admito que sim. Em certos casos, até agradeço: da música ao cinema, da literatura aos lugares, são incontáveis as descobertas que fiz porque alguém as fez por mim.
Mas recuso o fatalismo tecnológico de quem acha que somos puras marionetes das redes sociais, sem autonomia ou controle. Não somos. Não sou. A última palavra será sempre a minha.
Tive sorte, definitivamente. A minha geração também. Mas que dizer da geração pós-1996 —a geração Z, na linguagem dos especialistas— que nasceu, cresceu e irá envelhecer e morrer olhando para o ecrã do celular?
Esse é o grande mérito de “O Dilema das Redes”, o documentário do momento na Netflix: quem não conheceu a vida analógica está mais desarmado para a vida virtual. Isso é particularmente chocante em questões de verdade e mentira, talvez a grande observação do documentário.
Sim, as redes viciam; exploram as preferências dos usuários; arruínam a sanidade deles com imagens inatingíveis de perfeição.
Sem falar dos “likes” que brincam com a autoestima da espécie a uma escala literalmente planetária: como afirma um dos tecnossábios entrevistados no filme, todos precisamos da aprovação dos outros, mas não de milhares de outros, de cinco em cinco minutos.
Mas o problema principal está na forma como as redes aprofundam e cristalizam a nossa ignorância. Exemplo: se acreditamos que a Terra é plana, seremos encaminhados para a ala do manicômio onde existem outros malucos como nós. O que significa que as nossas convicções nunca são testadas ou contestadas, são apenas reforçadas.
Se isso é cômico em matéria geofísica (eu gosto dos terraplanistas e me divirto com eles), é menos cômico em matéria política. Esquerda e direita sempre existiram na política moderna; e a diversidade de opiniões é a maior proeza das democracias liberais e pluralistas.
Mas para que essas democracias funcionem, é preciso que os participantes do jogo democrático aceitem previamente uma verdade, ou um conjunto de verdades, que é exterior e objetiva.
Eu posso preferir a liberdade sobre a igualdade (ou vice-versa). Mas convém que, antes do debate, os diferentes participantes aceitem a validade da democracia, ou da decência, ou da honestidade, ou da racionalidade, como alicerces de qualquer sociedade civilizada. Quando não existe esse consenso mínimo, tudo é violência e gritaria, com os diferentes símios a tentarem esmagar o crânio do inimigo.
Haverá saída para este labirinto? Há: a internet é um faroeste e, como aconteceu com o próprio faroeste, a regulação e a lei acabarão por chegar a esse território selvagem. O combate ao anonimato, por exemplo, é uma das mais importantes batalhas.
Mas as leis não resolvem tudo. É preciso que os usuários, sobretudo os mais jovens, aprendam a sair do aquário e a respirar fora dele. Isso implica que noções arcaicas de conhecimento e reflexão —ler livros, escutar especialistas, estudar, viver “cá fora”— são hoje mais importantes do que nunca. Não apenas porque nos tornam melhores; mas porque nos tornam mais vigilantes e menos otários perante a última vigarice do feed de notícias.
Nenhum comentário:
Postar um comentário