sábado, 3 de outubro de 2020

Beco sem saída

A economia, para mim, é apenas uma disciplina fascinante. Ainda assim, em certas biografias dos grandes economistas, como a de Keynes por Robert Skidelsky, outros traços intelectuais acabam me atraindo mais do que o próprio talento econômico.

Como leigo me interrogo sobre as grandes opções pós-pandemia no Brasil. Uma delas é a retomada da produção. Já escrevi aqui que um dos mistérios, para mim, é o sentido da retomada.

Sobretudo após a pandemia, ficou evidente que uma das tendências internacionais é valorizar a natureza, escapar da velha concepção de que o progresso significa necessariamente o esgotamento dos recursos naturais. De certa forma, a pandemia acentuou outra tendência que poderia ser um dos fundamentos da reforma do Estado: o crescimento do mundo virtual.

Os projetos de recuperação econômica do governo passam longe das duas tendências. No caso da natureza, então, a perspectiva é radicalmente reacionária: destruir rapidamente, antes que percebam, como manda a teoria de passar a boiada enquanto todos se concentram na pandemia.

Não se sabe o que será da economia quando recuperada, se isso realmente ocorrer. O que se discute hoje é principalmente uma continuidade da ajuda emergencial.

A pandemia revelou 11 milhões de invisíveis, que nem estavam nos registros do governo. Isso implica a necessidade de ampliar um programa como o Bolsa Família, até aumentando a quantia mínima para a sobrevivência. Como resolver? O governo elegeu-se com plataforma ultraliberal. Foi atropelado pela pandemia. O ministro Paulo Guedes passou a pensar com outras coordenadas.

Bolsonaro, com medo de perder a reeleição, tende a desejar um projeto de renda cidadã, que já se chamou Renda Brasil. No passado os nomes iam sendo trocados até chegar a Brasil: Vera Cruz, Santa Cruz. Agora decrescem a partir de Brasil.

O ultraliberalismo de Guedes não aprova esse tipo de programa. O próprio Bolsonaro chamava o Bolsa Família de “bolsa farinha” e dizia que seu objetivo era criar um eleitorado de cabresto.



Estão perdidos no seu labirinto. Guedes tentou tirar dinheiro dos pobres para cobrir os gastos. Uma heresia eleitoral, e Bolsonaro não quis. Outra tentativa era dar o calote nos precatórios, que já são uma dívida em atraso. Ou, quem sabe, tirar dinheiro do fundo da educação.

Não há saída, porque não há dinheiro legalmente disponível. Certamente vão rodar em torno de si próprios. Possivelmente vão até desistir parcialmente do projeto. Bolsonaro já ensaiou uma retirada do tipo raposa e as uvas: ajuda permanente é coisa que só interessa a comunistas, disse.

Esse fracasso não torna de novo invisíveis os pobres que surgiram na pandemia. Ao lado dos outros que recebem Bolsa Família, continuam sendo uma dramática lembrança das desigualdades no Brasil.

Num quadro tão complexo, um leigo deveria calar-se. Mas já que é impossível resolver com pedaladas, não custa nada lembrar que uma profunda reforma do Estado liberaria recurso para essas necessidades. Ela não se faz pelos imensos obstáculos políticos. Mas ninguém até hoje buscou forças na sociedade para ao menos tentar realizá-la.

Bolsonaro é o tipo de funcionário público que engaja toda a família na profissão, filhos, ex-mulheres, primos, fantasmas variados. Além disso, sua relação com as Forças Armadas o leva a buscar milhões de artifícios para seduzi-las.

Outro caminho aberto é o meio ambiente. Mesmo predadores concordam que o saneamento básico é uma necessidade mais do que urgente. Por que não se dedicar amplamente a ela, abrindo milhares de empregos?

Durante a pandemia a votação do marco do saneamento foi uma novidade. A expectativa era de que uma intensa atividade surgisse como consequência. Saneamento num mundo assustado com pandemias passa a ser algo mais facilmente financiável. Assim como é uma questão planetária alguém comer um animal selvagem na China, também o é o esgoto a céu aberto no Brasil.

Verdade que não se produz com isso um vírus tão facilmente propagável e misterioso como o corona, no entanto, não se pode subestimar a cólera. Soldados de origem asiática a serviço da ONU levaram-na para o Haiti, com resultados devastadores.

O que o Brasil precisa, no meu entender, os economistas do governo não conseguem oferecer. Querem voltar à produção cega do passado e, o que é pior, para atenuar problemas sociais profundos recorrem aos mesmos truques do passado, com pequenas variações e a mesma malandragem.

É preciso um plano de retomada com os olhos no futuro e envolvimento social. Isso não virá desse governo. Vamos aos trancos e barrancos encarar uma longa crise.

Enfim, uma solução em que a política, no bom sentido, seja o caminho para recuperar o País não está no horizonte. Ainda vamos assistir a muitos espetáculos com mágicos e malabaristas que nos distraem do grande objetivo que é nos assumirmos como potência ambiental num planeta que precisa de nós. É o famoso país do futuro em permanente desencontro com o próprio futuro.

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