Em 2006, no auge de embates com esquerdistas, escrevi um texto que me rendeu uma tempestade de insultos. Lá se lia: "Fico aqui queimando as pestanas, tentando achar um jeito de eliminar o povo da democracia. Ainda não consegui. Quando encontrar, darei sumiço no dito-cujo em silêncio. Ninguém nem vai perceber...".
Um amigo me censura pelo emprego, que considera excessivo, da ironia. Talvez tenha razão. Não costumo explicá-la. Com nota de rodapé, ela vira capim. Esquerdistas me mandaram para o "paredón" moral por aquele artigo. Direitistas aplaudiram. Corria o ano da graça de 2006, e Lula seria reeleito três meses depois, um ano após o mensalão.
Eu fazia uma citação coberta do Artigo 10, de "O Federalista", de Madison, que trata da necessidade de preservar a "Assembleia" das paixões do que ele chama "facções" —sejam majoritárias ou minoritárias. E daí se pode supor que o que ele entende por "República", que nós chamamos "democracia", é mais do que a vontade da maioria.
O governo era então de esquerda. Hoje, somos governados pela extrema direita, com um estoque de agressões à ordem constitucional e legal que supera, em um ano e nove meses, os 13 e poucos de gestões petistas. E eis-me aqui de novo a negar capim a ruminantes.
Nesta sexta, o país vai superar a marca dos 141 mil mortos por Covid-19. Estamos à frente dos EUA em óbitos por 100 mil e lideramos o ranking tétrico do G-20. As praias e os bares indicam que parte considerável dos brasileiros faz a sua própria leitura de "Os Lusíadas", de Camões. Entregam-se esses à urgência embriagada "e se vão da lei da morte libertando", ainda que possam efetivamente matar e morrer em suas obras nada valorosas.
Há um desprezo épico pelo saber testado e firmado, do tamanho das línguas de fogo que devastam o Pantanal e parte da Amazônia. Os investimentos estrangeiros despencam e fogem, levados pelos fumos da irresponsabilidade oficial e da morte. Jamais me acusem de ter dito um dia que a voz do povo é a voz de Deus. Já escrevi que, mais de uma vez, foi o capeta que soprou as escolhas aos ouvidos das massas.
"Tá tristinho, Reinaldo, com a vontade do povo?" Reproduzo pergunta que um petista fez em 2006 na área de comentários do blog quando escrevi o tal artigo. Nessas coisas, não sou alegre nem triste. Aponto o que vejo. Reservo os sentimentos para meus amores e meus amigos.
O auxílio emergencial, obra do Congresso, não de Bolsonaro, e a caça a governadores que combateram o vírus, com ou sem roubalheira, explicam parte do resultado da pesquisa. Há, pois, fatos que elucidam os números. Mas não era e não sou paternalista: a avaliação traduz agora, como traduziu no passado, escolhas que são também morais e éticas.
Todo o cuidado é pouco. A culpa não é só do povo, claro! Há a das elites, ainda mais importante, conforme também se depreende do citado Artigo 10. Escrevemos nosso próprio roteiro de "Como as Democracias Morrem". No livro, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt observam que uma das "normas cruciais" para a sobrevivência da democracia é a "reserva institucional".
Entende-se por isso "o ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito", pois tal ação "pode pôr em perigo o sistema existente". Ministério Público e Judiciário, nos últimos seis anos, têm mandado a autocontenção às favas e destruído o ambiente da "reserva institucional", pretextando o cumprimento da lei —o que, de resto, é falso.
A democracia, que é mais do que um sistema de escolha de governantes, está, sim, em perigo. Seja porque a paixão das facções chega às decisões de Estado, seja porque a elite do aparato investigativo-judicial perdeu a noção da importância que tem a "reserva institucional" na defesa de um regime de liberdades.
Pronto. O achincalhe pode começar, como em 2006, agora por novos autores.
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