Até o momento, a formulação política das oposições tem se limitado a criticar as gafes, bravatas e malfeitos do Presidente e dos seus, ou, quando muito, a exercitar uma anacrônica nostalgia da política externa dos governos pré-Bolsonaro.
Enquanto isso, um século 21 se desdobra com desafios e oportunidades para o maior país da América Latina. Que fatores travam a formulação de alternativas para a diplomacia nacional?
Recentemente, uma curta entre o Bolsonaro e Al Gore — ganhador do Prêmio Nobel da Paz e ex-Vice Presidente dos Estados Unidos — viralizou nas redes, atraindo o ridículo de setores da elite brasileira que pensa a imagem do país no mundo. A crítica, porém, focou na caricata falta de postura do Presidente do Brasil, cuja ignorância constrangeu um líder mundial.
Pouco se debateu sobre o mérito da discussão havida entre os dois — os destinos da Amazônia —, ou sobre quais soluções o governo brasileiro deveria pautar no complexo debate sobre mudança climática.
Ensaios de resposta ao status quo até existem, porém, ainda que anacrônicas. Enquanto Brasília quebra recordes de desmatamento e o país se transforma na capital mundial do coronavírus e da cloroquina, o melhor que as oposições têm conseguido oferecer é a nostalgia por um passado cujas glórias foram controversas, para dizer o mínimo.
Como contraponto a atual política externa do governo brasileiro, o legado internacional dos governos Lula e Dilma tem sido reivindicado para servir como alternativa ao amadorismo do comportamento diplomático brasileiro.
Justiça seja feita, é evidente que a política externa levada à cabo pelos governos de Lula, Dilma e Temer esteve muito mais à altura da tradição de excelência da diplomacia brasileira. Porém, reconhecer o amadorismo com que Brasília hoje se posiciona no mundo está longe de equivaler a uma reivindicação do passado recente como sarrafo diplomático digno de guiar as escolhas do país para o futuro.
Fatos da história recente ilustram um desempenho satisfatório, mas aquém do potencial brasileiro para o protagonismo internacional.
Agendas centrais para o interesse nacional, como a conquista da liderança geopolítica da América do Sul, não vingaram, tendo enfrentado disputas com uma Venezuela cheia de ambições e vitaminada pelo comércio petrolífero.
Em matéria de política comercial, Brasília ficou à margem da articulação da Aliança pelo Pacífico, perdendo protagonismo para o Chile e para a Colômbia na economia e na geopolítica da região. Sob Lula, o governo brasileiro só não fracassou na costura de acordos comerciais significativos porque sequer tentou costurá-los.
Nem mesmo as celebradas vitórias na agenda global de combate à pobreza — que sempre motivaram a carismática presença de Lula em fóruns internacionais — resistiram ao teste do tempo. Literatura recente mostrou que a queda na desigualdade econômica na década de 2000 não foi significativa como se imaginou. Com Dilma, a desigualdade inclusive voltou a crescer.
Agendas centrais para o interesse nacional, como a conquista da liderança geopolítica da América do Sul, não vingaram, tendo enfrentado disputas com uma Venezuela cheia de ambições e vitaminada pelo comércio petrolífero.
Em matéria de política comercial, Brasília ficou à margem da articulação da Aliança pelo Pacífico, perdendo protagonismo para o Chile e para a Colômbia na economia e na geopolítica da região. Sob Lula, o governo brasileiro só não fracassou na costura de acordos comerciais significativos porque sequer tentou costurá-los.
Nem mesmo as celebradas vitórias na agenda global de combate à pobreza — que sempre motivaram a carismática presença de Lula em fóruns internacionais — resistiram ao teste do tempo. Literatura recente mostrou que a queda na desigualdade econômica na década de 2000 não foi significativa como se imaginou. Com Dilma, a desigualdade inclusive voltou a crescer.
Sob condições de normalidade política, a tese do brilhantismo recente da política externa brasileira nunca pararia em pé.
Enquanto isso, a década de 2020 nasceu para valer.
Estados Unidos e China travam uma batalha comercial pelos mercados globais da tecnologia 5G e o Brasil — um dos maiores mercados consumidores de internet do mundo — não parou para pensar uma estratégia de negociação para uma decisão geoeconômica tão monumental.
Não é certeza sequer que o Palácio do Planalto se dá conta de que o Brasil seja talvez o mais crucial fiel da balança neste momento da disputa global.
Em outro front de disputa da economia global, o trauma causado pela pandemia faz emergir lentamente um novo consenso sobre o valor estratégico da diversificação das cadeias globais de suprimentos. Nem por isso tem havido no Brasil debates, discursos, publicações ou pautas na imprensa apontando que o país deveria aproveitar esta histórica oportunidade para atrair investimentos estrangeiros diretos em direção a um salto de qualidade na nossa enferrujada infraestrutura.
Que agendas devem ser priorizadas para uma reinvenção do lugar do Brasil no mundo?
As oportunidades e responsabilidades globais do Brasil no século 21 vão muito além da dimensão econômica.
Na América do Sul, o desastre político e econômico na Venezuela impõe o fardo da liderança regional sobre os ombros da fronteira brasileira. Cabe ao Brasil estar à altura de sua vocação para liderar a região e articular diálogo com todos os stakeholders em Caracas — o regime de Maduro, a oposição e os militares — de modo a endereçar um consenso negociado para superação da crise de refugiados que hoje já ofusca até mesmo a recente tragédia humanitária na Síria.
Como democracia protagonista do mundo em desenvolvimento, o Brasil deve um compromisso não apenas com a sua própria emancipação econômica, mas com desenvolvimento social, econômico e político do Sul Global. Esta percepção não é novidade para o pensamento diplomático nacional. Iniciativas anteriores como a IIRSA (aliança para integração de infraestruturas no Cone Sul) foram capazes de mobilizar os recursos e a expertise da engenharia civil brasileira, de excelência, para uma agenda de melhorias nos complexos de infraestrutura de nações parceiras.
O tempo é de retomada e expansão desta agenda, para além inclusive das fronteiras sul-americanas.
No continente africano, o Brasil encontra uma dívida histórica a ser paga, com atraso, e uma oportunidade de desenvolvimento mútuo a ser aproveitada, o quanto antes. Como maior país africano fora da África, é do Brasil a responsabilidade — e a oportunidade — de viabilizar cooperação com nações africanas com vistas ao desenvolvimento, aqui e lá, de empregos, expertise agrícola, projetos de construção civil, intercâmbio cultural e segurança alimentar. Passos promissores em direção a esta agenda foram feitos sob a liderança de Lula.
No mundo inteiro, a força com que a agricultura brasileira lidera os rankings de fornecedores de alimentos no mundo é o resultado de décadas de investimento em produtividade e planejamento estratégico. O dividendos em soft power que nascem do fato de alimentarmos mais de 1 bilhão de pessoas além das nossas fronteiras precisa ser mobilizado para construir momento e legitimidade na agenda da segurança alimentar global, da China à Nigéria.
Em matéria ambiental, de novo, a história pesa contra a superficialidade do discurso político. A despeito de turbulências recentes, poucos países gozam de legitimidade no debate global sobre desenvolvimento sustentável como o Brasil. Apesar dos tweets de Bolsonaro, o Brasil permanece como potência ambiental mundial, na exata medida em que suas fronteiras ainda abrigam a maior biodiversidade registrada no mundo. A matriz energética brasileira permanece a mais lastreada em energias renováveis. Não há máquina do tempo capaz de jogar o Brasil para longe da história de liderança que desempenhou na construção dos mais importantes consensos do direito ambiental internacional, da Eco-92 à Rio+20, passando pelo protagonismo brasileiro na concepção do Protocolo de Nagoya.
Quanto mais se reflete sobre a história recente do Brasil, mais elementos se encontra para fundamentar a vocação brasileira para o protagonismo internacional.
Desde a primeira hora do pós-segunda guerra encarada como nação consensual pelos arquitetos do sistema ONU, o Brasil guarda — até hoje — um potencial incomparável para pautar as Nações Unidas.
As adversidades enfrentadas atualmente pelo multilateralismo precisam ser aproveitadas como oportunidade de consolidação de uma agenda transformadora sua Assembleia Geral em verdadeiro parlamento mundial, espaço global onde nações emergentes adquiram maiores poderes institucionais, com o Brasil avançando em sua ambição de sentar-se permanentemente no Conselho de Segurança.</p>
<p>Pesquisas de opinião recentes apontam recorde de apoio ao regime democrático na sociedade brasileira. Pode ainda não ser claro quando, mas é fato que, em algum momento, a Era Bolsonaro vai acabar. Quando este dia finalmente chegar, à recém-empossada elite da política externa brasileira não será mais possível apenas surfar no consenso de que Bolsonaro prejudicou o interesse nacional enquanto ocupou o Alvorada. Ao mesmo tempo, não será mais possível requentar as soluções diplomáticas da velha Nova República, para as quais o eleitorado brasileiro não tem mais paciência.
O Brasil precisa do mundo, mas nunca o mundo precisou tanto do Brasil. É chegada a hora da diplomacia brasileira retomar a liderança que lhe cabe no processo de definição dos destinos nacionais.
Pedro Vormittag, Lemann Fellow na School of International and Public Affairs da Universidade de Columbia
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