segunda-feira, 27 de julho de 2020

Anatomia de um fiasco

“Não se pode julgar um homem, decidir de sua alma e do que sente, enquanto ele não mostrar quem é, ditando leis”
Sófocles, pela boca de Creonte, rei de Tebas

Decorrido um ano e meio de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro já “ditou” muitas leis, mas não deu mostras de haver compreendido os enormes desafios que o Brasil enfrentará no curto e no médio prazos.

A pandemia que nos atingiu em cheio explica somente uma parte dos desacertos a que temos assistido. O retrospecto dos primeiros 19 meses de Bolsonaro é deveras lamentável. Ele começou mal, abraçando uma agenda megalomaníaca - acabar com a “velha política”, mudar profundamente os valores e comportamentos da sociedade, e por aí afora. E não parece ter consciência dos graves problemas que teremos de enfrentar na pós-pandemia; a julgar pelo cenário de hoje, chegaremos ao fim desta crise estrategicamente enfraquecidos e despreparados para o que virá depois.

Mesmo no que concerne à pandemia, o fato é que Jair Bolsonaro mais atrapalha do que ajuda o esforço dos Estados e municípios no combate à doença. O artigo 30, inciso VII, da Constituição de 1988 determina, cristalinamente, que compete aos municípios “prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e dos Estados, serviços de atendimento à saúde da população”. Será que, para o presidente, “cooperação técnica” significa tentar induzir os agentes de saúde e uma parcela importante da sociedade a se defender da covid-19 com remédios comprovadamente ineficazes? Ou debochar do uso da máscara, não observar o distanciamento social, abraçar correligionários (e até bebês) e fomentar aglomerações? Qualquer pessoa capaz de interpretar o citado inciso VII concluirá que tais condutas são formas de sabotar, não de prestar assistência técnica. Por sorte, a missão dos agentes de saúde convocados a enfrentar a doença vem sendo cumprida a contento.


O preenchimento de altos postos da administração pública também evidencia - com as exceções de praxe - o despreparo de Jair Bolsonaro para o cargo que ocupa e, pior que isso, sua tendência a se deixar pautar por orientações ideológicas, no mínimo, patéticas. Os estragos já feitos pelos ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores tão cedo não serão sanados. Somados às idiossincrasias do próprio presidente, Ricardo Salles e Ernesto Araújo são diretamente responsáveis pelo isolamento do Brasil e pela vertiginosa queda de nosso país no exterior. O elevado número de militares no governo também preocupa, não tanto como uma premonição autoritária, mas pelo risco de debilitação das Forças Armadas como organização nacional.

Descabe completamente, e ainda mais nos limites de um artigo, tentar prever o que vai acontecer com a economia mundial e, dentro dela, nossas chances de recuperação. Há quem acredite numa recuperação rápida e quem, com fundamentos igualmente sólidos, descarte inteiramente tal hipótese. Num ponto, porém, não podemos escorregar. Instigados pelo tombo que a economia vai levar, os nacional-estatistas já começam a se manifestar de forma audível. A inutilidade da discussão liberalismo versus antiliberalismo em abstrato já deveria estar mais que clara, mas já há quem apregoe as vantagens e até mesmo nosso “inexorável retorno” ao modelo estatizante que praticamos durante a maior parte do século 20. Isso como se em algum momento tivéssemos de fato implementado uma reforma liberal!

Salta aos olhos que, ainda se fosse desejável, ressuscitar a esta altura um modelo de forte predomínio do setor público na economia equivale a ignorar a realidade imediata com que nos deparamos. Antes da pandemia, fechar o Orçamento federal já exigia do governo um contorcionismo patético. Sabíamos - e sabemos - todos que um ajuste rigoroso das contas públicas e uma expressiva atração de investimentos estrangeiros eram - e são - condições essenciais para uma retomada saudável do crescimento. E sabemos, agora, que a pandemia destruiu um montante colossal de riqueza. Centenas e centenas de empresas faliram, muitas delas sem chance de recuperação. O impacto de tudo isso na arrecadação será medonho. Como, então, ressuscitar nosso antigo modelo de crescimento, torcendo mais uma vez o nariz para o capital privado?

Sobre a educação, não há muito a acrescentar. Nosso sistema de ensino, como ninguém ignora, é pior que ruim: é péssimo, calamitoso.

Algo em torno de 70% dos indivíduos com idade igual ou superior a 15 anos não atingem o nível internacionalmente tido como aceitável em Matemática, 60% não atingem tal nível em Ciências e 50% ficam aquém dele em Português. Nessa área, o atual governo já está no terceiro ministro, tendo os dois primeiros - como diria um crítico de ópera - “passado pela cena sem dizer palavra”. Importante, direi mesmo histórica, foi a aprovação do Fundeb, emenda constitucional que destina mais recursos para a educação básica, obra muito mais do Congresso que do Executivo.

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