No fim deste mês, a editora Caminhos lança Guerra Cultural e Retórica do Ódio: Crônicas do Brasil, de João Cezar Castro Rocha, em formato tradicional. Castro Rocha é professor de literatura comparada da Unerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e um obstinado estudioso do iracundo obscurantismo bolsonarista desde quando todo mundo só tinha olhos para a Lava Jato e a agenda econômica do Posto Ipiranga.
Os dois livros, inteligentes, bem argumentados e sem ressaibo acadêmico, nos ajudam a compreender com consistência e sutileza o pesadelo que passamos a viver depois da eleição do mais ignorante, grosseiro e nefasto presidente da história da República. São duas análises complementares, sem ordem preferencial de leitura, embora por enquanto apenas Ponto-Final, por sorte o de maior amplitude, esteja disponível.
Hubner trata da guerra de Bolsonaro contra a democracia em suas várias instâncias, o que inclui, evidentemente, sua guerra contra a cultura. Ainda durante as eleições de 2018, Hubner rotulou o futuro presidente de “o candidato do colapso”, labéu paulatinamente justificado nos primeiros 14 meses de seu mandato. A pandemia pode apressar a derrocada.
O capitão não governa, só sabe hostilizar, ameaçar, agredir, cortar verbas, destruir. “Ele transformou a devastação em estilo de governo”, diz Hubner. Em seu governo, só o ódio não é fake. Cercado de ministros civis e militares de inauditas incompetência e sabujice, ele não preside, ele comanda uma guerra. Civil. Prometida reiteradas vezes. E é por isso que se empenha em armar a população, como se dela, armada, precisasse para se proteger dos 70% que não o apoiam. Mas as milícias precisam renovar seu arsenal, certo?
Por acreditar que “o xingamento despolitiza”, não ajuda em nada a entender o que estamos vivendo e nos desobriga de pensar, Hubner é contra tratar Bolsonaro como burro e demente. Desobrigar de pensar é, a seu ver, um dos grandes objetivos do projeto autoritário do capitão. Para ele, a disputa política segue uma lógica belicista e a cultura de morte que a acompanha.
“É uma política de morte que considera conversa fiada a ideia de que a disputa política se faz sobre um terreno comum compartilhado e compartilhável”, acrescenta Hubner. Por inviabilizar a convivência democrática, só a necropolítica serve ao objetivo principal do presidente, que sempre foi destruir a democracia e, consequentemente, impor uma ditadura.
Ponto-Final, que não deveria ter esse hífen, é uma das expressões prediletas de Bolsonaro, principalmente ao lidar com a imprensa, expediente típico de quem exige ter a última palavra e impor o silêncio numa discussão. Coincidência ou não, ganhou esse nome a lei que em 1986 paralisou os processos contra agentes da ditadura militar argentina, mas acabou declarada inconstitucional em 2005, levando à prisão diversos de seus verdugos. Hubner alerta: “É uma expressão traiçoeira, volta-se sempre contra quem faz uso dela”.
Como é sabido e lamentado, não impusemos sequer um ponto e vírgula à ditadura de 64, o que por certo viabilizou a ascensão, para não falar da mera existência do bolsonarismo e seu culto ao torturador Ustra e dos zumbis da linha dura frotista que presentemente vagam pelo Planalto.
Em suas crônicas do Brasil intoxicado pela retórica do ódio, o prof. Castro Rocha passa pela blitzkrieg orientada em escala mundial por Steve Bannon, o Dr. Mabuse das fake news, para logo chegar à nossa jabuticaba digital, com seus influenciadores de aluguel e seu vasto exército de robôs, ora investigados pela PF e sitiados por uma CPMI.
No DNA do “gabinete do ódio” misturam-se a velha Doutrina de Segurança Nacional e suas paranoias sobre “inimigo interno”, o discurso revanchista e revisionista sobre o golpe de 64 fermentado no projeto Orvil (o anagramático Livro Secreto do Exército com que o general Leônidas Pires Gonçalves tentou em vão abafar e desautorizar os documentos e relatos irrefutáveis sobre as arbitrariedades, torturas e desaparecimentos de corpos na ditadura, denunciados no livro Brasil: Nunca Mais) e as alucinações pornofascistas daquele astrólogo da Virginia, o Svengali ideológico de várias Trilbis que (de)compõem o governo Bolsonaro.
O prof. Castro Rocha reconstitui, nas necessárias minúcias, a evolução dessa lavagem cerebral marcada pelo ressentimento e a ideia fixa de que comunistas planejam dominar e destruir o Brasil infiltrados nas universidades, na mídia, nas artes – em toda cultura, enfim. Essa ladainha expiatória, cediça e em descrédito desde a Guerra Fria, já lastreou um bocado de ditaduras de extrema direita, inclusive aqui, e continua sendo o cantochão dos bolsonaristas, com eco na cúpula do governo, que enquanto alardeia não pretender um golpe (ou autogolpe), esmera-se em instrumentalizar todas as instituições do Estado a seu favor.
A função precípua da guerra cultural bolsonarista poderia ser, mas não é, a imposição dos valores de sua grei, que inexistem ou são anulados por falas e atos de seu líder, cujo único desígnio, vale insistir, é a destruição sistemática das instituições. Para o professor, “chegou a hora de dizermos com todas as letras que é um governo de extrema direita, apenas interessado num projeto autoritário de poder cuja finalidade última é eliminar todo aquele que pense de forma diversa”.
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