quinta-feira, 18 de junho de 2020

Racistas, nós?!

Nestes tempos, a vida continua a revelar-nos um enredo de ficção distópica à frente dos nossos olhos. Há dias, ouvi ao fundo a voz off de um canal de televisão noticiar que uma “manifestação racista e uma manifestação antirracista” se tinham confrontado em Londres. Estremeci. O próprio conceito de “manifestação racista” é coisa intolerável e inimaginável – algo ao nível de uma manifestação de assaltantes ou de uma manifestação de agressores. E, porém, aconteceu. Grupos de extrema-direita gritaram palavras de ordem contra os negros, sob o pretexto de protegerem as estátuas que poderiam vir a ser destruídas pelos grupos de extrema-esquerda. Cá está o estado a que as coisas chegaram: os dois lados da barricada extremados frente a frente, arrasando uma causa que tem de ser comum e que não devia ter cor política. E, porém, estupidamente, tem.

O tema do antirracismo não pode ser da esquerda nem da direita. Tal como a igualdade, este tema tem de ser de todos. E não, não pode bastar-nos não sermos racistas, temos de ser ativamente antirracistas. Todos, da direita à esquerda democráticas, passando pelos vários centros, têm de fazer desta uma causa também sua.


Infelizmente, a direita portuguesa ainda não percebeu isso, e a esquerda está a deixar que a extrema-esquerda assuma o protagonismo do tema. A direita continua a enterrar a cabeça na areia e a repetir a velha lição aprendida na escola no tempo da outra senhora: fomos “colonizadores diferentes”, sempre tratámos bem, acolhemos e integrámos os negros, e não temos qualquer problema de racismo em Portugal. Que dizer da boutade de Rui Rio, um candidato a primeiro-ministro, acerca do assunto? Assegura o líder do PSD que não existe um problema de racismo em Portugal e diz que “ainda ficamos é racistas com tanta manifestação”. Os estudos sociológicos desmentem-no, mas Rui Rio garante que está tudo bem e ainda faz piadas que nem à mesa do café se admitem.

Já a esquerda está a deixar que a causa seja tomada de assalto pelos extremistas. Pelos destruidores ignorantes de estátuas e pelos discursos do apagamento da História e da memória coletiva. Não sou, à partida, contra intervenções em situações-limite – compreende-se que não faz sentido termos estátuas de Salazar ou de Hitler nas praças públicas. Mas não vai ficar pedra sobre pedra se começarmos a olhar todas as figuras de antigamente pelos valores de hoje, filtrando-as pelos crivos mais exigentes que só surgiram depois de uma evolução de séculos. Se começarmos a retirar estátuas das ruas e obras de arte dos museus de figuras opressivas, abusadoras, racistas e misóginas, pouco vai restar. A distância para estarmos, não tarda pouco, a queimar livros não é grande. Não é este o caminho, até porque este caminho afasta as pessoas “comuns” desta luta.

Precisamos de todos – mesmo todos, para combater um problema que é evidente que existe por cá. Segundo o European Social Survey, Portugal é o país da Europa com maior racismo biológico − a crença de que há raças ou grupos étnicos que nasceram menos inteligentes e/ou menos trabalhadores (52,9% dos portugueses afirmam-no, quando a média europeia é de 29,2%) −, e o quinto país com maior nível de racismo cultural – a crença de que há culturas muito melhores do que outras (54,1% face à média europeia de 44%). A discriminação racial nas polícias nacionais também está documentada. Portugal está no topo dos países da Europa Ocidental com o maior número de casos de violência policial e os riscos são maiores para afrodescendentes, concluiu um estudo de 2018 do Comité Europeu contra a Tortura do Conselho da Europa.

Consegue imaginar arriscar-se a ser espancado por causa do tom de pele se der uma resposta torta a um polícia? Consegue imaginar o que é sentir o medo nos olhos dos outros quando entra algures só porque tem um capuz na cabeça? Consegue imaginar o que é ser um desportista e ter a claque da equipa adversária a imitar chimpanzés sempre que entra em cena? Consegue imaginar o que é ficar para o fim da lista numa candidatura a um emprego por causa da sua cor? Eu, branca e privilegiada, não consigo – mas consigo perceber a revolta de quem passa por isso.

É preciso, de uma vez por todas, percebermos que temos de resolver este problema de descriminação, e começarmos por admitir que ele existe é o primeiro passo. Sem deixar polarizar os discursos, porque isso é o pior que podemos fazer pelos negros e pela causa antirracista.

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