sexta-feira, 5 de junho de 2020

'I can’t breathe': Carta ao Gustavo

O Gu tem 5 anos. Guineense de gema, com uma grande costela portuguesa, é lindo na sua pele chocolate. É meu sobrinho.

O pai, meu irmão, é bem moreno e, debaixo do sol africano, o tom de pele fica muito próximo do Gu. A mãe uma fula guineense linda de morrer, já não é bem assim.

A palete de cores familiares estava harmoniosa para o Gu até à minha chegada. É que ao contrário do pai, a tia Sara é muito branca, mas mesmo muito branca, e com sol fica vermelha, não morena.

O caos estava lançado naquele pequeno cérebro com uma inteligência emocional acima da média que me comove. Eu fui baralhar-lhe “as coisas”.

E foi a mim, não ao tio Mário, também ele muito moreno, que numa daquelas noites quentes em que o nosso programa favorito é estarmos sentados na varanda para receber o fresco dos mosaicos enquanto brincamos e conversamos, que o Gu lançou a pergunta mais inocente de todas e que diz tanto: “tu também vais ficar preta?”

Para o Gu há um degradê de cores que vai do branco ao preto e acha que todos começam no branco para acabar no preto. Acho linda esta visão e percebo tão bem de onde vem.

Sonha com Portugal. “Tem muitas coisas”, diz ele. E eu quero muito que ele venha conhecer Portugal e que conheça mais mundo ainda além fronteiras, onde vai encontrar outras variações de cor, os esquálidos, os amarelos, os vermelhos.

O que eu ainda não lhe disse é que na Guiné ele é branco, no mundo não.

Ver as imagens de George Floyd com a cara no alcatrão contra um pneu, o joelho do polícia no pescoço e a morrer sem ar, é claro que me faz pensar no Gu e no Júnior, o mais novo.

Pensar no mundo que os espera e na possibilidade de não estar presente num momento em que precisem de defesa destes atos de violência, que têm como único critério a cor da pele, angustia-me, tira-me a respiração.

Recentemente, no bairro de Alvalade, Lisboa, assisti ao ato abjeto de ver uma mulher branca, loira, cuspir na cara de uma pessoa com uma cor diferente da dela. A vítima, um homem, respondeu da forma muito inteligente e exemplar, sem violência, com palavras, e chamando a polícia. Só no último segundo, quando a mulher lhe bateu, ele teve de se defender.

Marcou-me. Fiquei mal disposta durante dias. Portugal não é um país racista? Tenho as minhas dúvidas. Que mundo é este?

Como é que eu vou explicar ao Gu o racismo que se vive no mundo. Um mundo que parece tão melhor do que o dele, “tem muitas coisas”, mas que o vai descriminar sem qualquer dó nem piedade.

Fico sem respiração só de pensar que o mundo pode arrancar toda a bondade e inocência deste pequeno grande coração, que tem a capacidade de expressar sentimentos como muitos adultos não têm, sem que lhe caia qualquer “píncaro”.

Fico sem respiração por todas estas pessoas, que tão bem me acolhem no seu país, para virem ser maltratadas no mundo dito civilizado.

Sara Filipe

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