“Dentro em breve a casa vai estar livre!”, reiterou o Sr. Olem quando me mostrava uma parede arruinada pelos insetos coletivistas.
Eu moro nesta casa desde 1974. Ela concretiza uma vida devotada exclusivamente ao trabalho intelectual. Por meio dele, exerço o magistério e a crônica jornalística, atividades resultantes de pesquisas e livros escritos no figurino professoral classificado por tio Marcelino (que foi fiscal de rendas — um belo emprego, conforme dizia) como “um sacerdócio”. Uma qualificação precisa porque, como agora constato, professor que sou por mais de 60 anos, dar aulas não pode ser um emprego porque o ensino requer “trabalho”: vocação e amor. Algo estigmatizado num sistema até anteontem sustentado por escravidão negra. Ademais, tenho convivido com a pecha delinquente segundo a qual “quem sabe faz, quem não sabe ensina!”. Eis uma “inocente” barbaridade explicativa do porquê somos governados por ladrões e loucos; e como o chamado “campo político” virou uma sentina.
Voltemos, porém, ao ataque dos cupins que comeram paredes e várias obras de Marx, Engels, Morgan e outros mestres e, de sobremesa, tornaram pó suas estantes. Já as brocas, menos intelectuais, atacaram um armário de roupas. Resultado: uns cem livros devorados por cupins e estragos sérios e irreparáveis na minha obsoleta aparelhagem de som.
Na medida em que Tinho e Tonho suavam removendo quilos de cupins ainda vivos como um político corrupto nacional, o Sr. Olem me perguntou se eu conhecia a história de um padre que havia decifrado a língua das aranhas e com elas trocado ideias e até mesmo a elas sugerido um regime político capaz de organizá-las — o regime republicano de governo...
Pasmo, logo percebi que o Sr. Olem repetia o conto de Machado de Assis “A sereníssima República”, publicado na coletânea “Papeis avulsos”, em 1882. Neste conto, Machado se equipara a Kipling e antecede à “Metamorfose”, de Kafka, quando narra como um cônego rompe a barreira da comunicação entre espécies, um marco da divisão entre natureza e cultura, dialogando com aracnídeos.
“Como assim?”, questionei.
“Bem, doutor, o Tonho e o Tinho dizem que trocam língua com brocas e cupins. Falam que eles têm uma casa real, milhares de nobres e milhões de operários, igualzinho a gente. O problema — continuou — é que os cupins se pensam como sem organização social quando, de fato, são super organizados. Por isso, Tonho e Tinho deles ouvem muitas queixas, pedidos e receitas salvadoras. Esse coletivo dos cupins”, falou o Sr. Olem, “é uma maluquice.”
“Maluquice”, completei eu num desagradável impulso, “é imaginar que eles falam com insetos!”
“Maluquice”, completei eu num desagradável impulso, “é imaginar que eles falam com insetos!”
“Tem mais: o Tonho sugere manter a velha hierarquia de 50 milhões de anos, enquanto o Tinho fala em igualdade, individualismo e iniciativa. Ele quer liquidar o familismo dos cupinzeiros e o compadrio das brocas.”
“E como ficamos?”, perguntei, certo de que estava ouvindo mais um louco, este felizmente apenas um matador, e não um presidente criador de cupinzeiros.
“Bem, doutor, o Tinho diz que tem tentado, mas sabe como é complicado adotar costumes que chegam de fora. Ele ouviu que alguns membros da nobreza cupinzeira querem mudar seus hábitos com leis, igualzinho às aranhas do livro que o senhor falou. Seus costumes, porém, de tão enraizados, que ficam invisíveis para eles. Como pensam que seus antigos valores não têm peso, acham que as novidades políticas caem num vazio...”
Cupins querendo democracia e brocas socialistas? Exterminadores falando com insetos?
Minha pausa para entender essa extraordinária narrativa foi interrompida pelo rotineiro almoço. Sentei-me e pensei em entrevistar os ajudantes que falavam com cupins. Seria uma belo estudo sociopsicológico. Mas a boa comida, a certeza de que a velha casa estava livre dos cupins e a obrigação de escrever esta crônica fizeram com que, como os cupins, eu deixasse para trás a imaginação.
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