segunda-feira, 15 de junho de 2020

À brasileira

Ainda é outono, há tulipas-do-gabão pelas calçadas, deve haver. E há uma lista tremenda de crimes imputáveis ao tirano, que segue livre de sentença, sorridente, jogando seus jogos mortais, negociando. Como a pedra que cai na água e faz brilhar círculos concêntricos, se somarmos aos nossos milhares de óbitos todos aqueles que vão se quebrando sem morrer completamente, teremos uma terra imensa de gente entristecida que não poupa de empestear com náusea a paisagem de quem ainda rega sua paz postiça no meio de uma guerra. Os dias têm amanhecido vermelhos, daquele vermelho denso de fornalha. Em qualquer lugar pode rebentar uma calamidade. Alguém é levado pela violência da voragem como se o chão se abrisse de repente, como se por azar, como se por acaso. Não dura meio minuto para uma mulher armadilhar uma criança só apertando um botão e deixando fechar-se uma porta. E como sair desse pesadelo de apocalipse se ainda há os que fazem festa, os que acarinham suas pistolas, seu muque de mata-leão, seu couro de porrete, e se ainda há os mais perversos que a polícia, em seus quase invisíveis gestos assassinos, em suas palavras-para-a-mídia, em suas assépticas maldades. Como barrar o mal sem sujar as mãos e os pés, sem desaprender a temperança, a diplomacia, o diálogo? A força bruta bate estaca cedo pela manhã, a força burra. Outro tempo corre nos cassinos do poder. Pessoas se amontoam nas lojas recém-reabertas, umas quantas de máscara à brasileira, arriada para o queixo. E os helicópteros continuam a invadir a nossa primeira hora iluminada. Os helicópteros, as sirenes, as serras. Também os bem-te-vis e os sabiás continuam. Como você está?, pergunta o amigo. Como tem passado esses tempos? Como um desses sabiás, você pensa. Escusada a pretensão, como um desses bem-te-vis. Ainda absurdamente vivo.
Mariana Ianelli

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