Chega material médico de Pequim a Paris ou a Lisboa. É a expressão da debilidade e da falta de sentido estratégico de um tecido produtivo que foi deixado aos apetites de uma elite sem noção das necessidades básicas do coletivo. Agora, em desespero, há empresas e comunidades de investigação que, na Europa e nos Estados Unidos da América, abandonam o que faziam normalmente e fabricam kits de testes ou máscaras de proteção. Mas é um arremedo, não é uma estratégia. Outros, os fortes de agora, tiveram-na e é a esses que europeus e norte-americanos, os fracos de agora, pedem ajuda. Ajuda humanitária, claro. E, como sempre aconteceu com aquela que foi dirigida aos fracos quando europeus e norte-americanos eram fortes, esta ajuda humanitária que agora é dirigida aos que estão fracos, virá com fatura.
Talvez agora os europeus e os norte-americanos percebam melhor o que é ser destinatário de ajudas e de cooperação. Talvez compreendam melhor que, para lá de boas intenções, de altruísmo, de solidariedade e de humanidade, há sempre uma relação de poder que vai transportada nessas ajudas e nessa cooperação, porque é claro que esse poder de quem é forte é o outro lado do estado de necessidade de quem é fraco.
Talvez os europeus e os norte-americanos entendam melhor, por estes dias, que a segurança humana que, enquanto fortes, prescreveram para o mundo, é aquela de que nós mesmos precisamos agora. Europeus e norte-americanos pregaram ao mundo que a segurança no século XXI não era para ser entendida de modo estreito, como segurança militar, de defesa do território contra invasões, coisa de exércitos e de submarinos. Que era muito mais do que isso: a segurança das pessoas, a freedom from fear e a freedom from need. Europeus e norte-americanos disseram ao mundo que era assim que devia ser. A segurança humana dos sírios, essa foi espezinhada pela insegurança mais clássica de todas: a do armamento vendido pelos mesmos europeus e norte–americanos aos senhores da guerra. A segurança humana dos palestinianos ou dos saharauis, essa, continuou a ser espezinhada pelas cumplicidades diplomáticas dos pregadores da segurança humana. O discurso da segurança humana soou, por isso, vezes demais, a ficção cínica. Mas, agora, é na Europa e nos Estados Unidos da América, e não lá longe, que se testa a coerência com a proclamação da segurança humana como objetivo certo. E a referência crucial desse teste é o Estado social. Ao contrário do que quer fazer crer o discurso securitário de exceção, é mesmo a freedom from fear e a freedom from want que são intensamente compreendidas por europeus e norte-americanos como pilares da segurança das suas vidas. Contra a insegurança insidiosa de um vírus agressivo, são os sistemas públicos de saúde que são vistos como garante da segurança das pessoas. Contra a insegurança imensa do desemprego, é o salário e a proteção social que são compreendidos como âncoras da segurança das vidas. Como depois da II Guerra Mundial, o que hoje se joga na Europa e nos Estados Unidos da América é a afirmação da segurança humana como princípio de organização social contra a barbárie. E isso tem um nome: Estado social.
Talvez agora os europeus e os norte-americanos entendam melhor que a segurança humana que advogam para o mundo começa aqui e que isso implica reforço dos serviços públicos contra o primado do negócio. Talvez entendam tudo isto agora. Mas talvez o desentendam logo a seguir. O vírus do business as usual é incrivelmente resistente.
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