A guerra de facções do crime organizado no Ceará, Estado que se tornou corredor de exportação do narcotráfico andino, foi a primeira crise enfrentada pelo presidente da República. Na semana da sua posse, Bolsonaro optou pelo envio da Força Nacional de Segurança para o Estado que havia acabado de reeleger um governador do PT.
Um ano depois, nova crise eclodiria sob a forma de motim policial. Como a força especial composta por policiais militares já não desse conta de reprimir seus próprios colegas, o presidente foi pressionado a decretar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), conduzida por militares do Exército. Entre uma e outra crise, deterioraram-se as bases da hierarquia e da disciplina das tropas locais e a capacidade de operação da força nacional. O governador é o mesmo, Camilo Santana, reeleito pelo PT. Quem mudou foi o presidente, ocupado, desde a posse, em incutir, nas bases policiais, o vírus da insubordinação que marcou sua carreira militar.
É uma barafunda bolsonarista por excelência. Desde sua criação, em 2000, a Secretaria Nacional de Segurança Pública, chapéu, no MJ, para a Força Nacional de Segurança, foi ocupada por policiais e especialistas. No governo Michel Temer, assumiu o primeiro general, Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro do governo Bolsonaro e um dos poucos militares da reserva a expor publicamente sua crítica à insubordinação policial.
Com a posse de Bolsonaro, o cargo seria ocupado por um segundo general. Secretário de segurança do governo Tasso Jereissati nos anos 1990, o general Guilherme Theophilo viria a ser o candidato tucano ao governo do Estado em 2018. Seu programa de segurança foi elaborado pelo coronel Aginaldo Ribeiro. Derrotado pela reeleição de Camilo Santana, Theophilo assumiria a secretaria nacional de segurança e, em retribuição aos serviços prestados na campanha, colocaria o coronel para dirigir a força nacional.
O casamento, amplamente coberto pelas redes sociais, com a deputada Carla Zambelli, entusiasta de primeira hora dos protestos de 15 de março, já havia tirado Aginaldo Ribeiro da obscuridade. Mas foi o discurso na assembleia dos amotinados cearenses que o tornou um ícone da era bolsonarista.
Nota do ministério de Sergio Moro limitou-se a informar que o coronel fez um discurso interno para os policiais. Foi outro “discurso interno”, de 30 de março de 1964, no salão do Automóvel Clube do Brasil no Rio de Janeiro que precipitou o golpe contra João Goulart. Ao contrário do coronel, Jango se dirigiu aos sargentos presentes com um apelo pelos valores militares da hierarquia e da disciplina, mas sua presença na posse da Associação dos Sargentos foi capaz de dobrar o último general que resistia ao golpe, Castelo Branco.
O coronel não é presidente da República mas é por ele mantido no cargo a despeito de estimular a sublevação de policiais num Estado em que o governador resiste à anistia de PMs com apoio do general Freire Gomes, comandante militar do Nordeste.
Chefe de uma força de segurança formada por homens recrutados na elite das polícias militares de todo país, Aginaldo não deixou dúvidas de que é capaz de colocá-la a soldo de interesses da conjuntura. Os policiais militares obedecem a tantos poderes que não surpreende se deixarem de se curvar a algum deles. Em “Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos” (Boitempo, 2019), Luiz Eduardo Soares, secretário de segurança nacional no governo Luiz Inácio Lula da Silva, lista as cadeias de comando cruzadas.
A Constituição trata as PMs como forças auxiliares e reserva do Exército, que também aprova o nome indicado pelo governador para seu comando. Ou seja, se o presidente da República é o comandante-em-chefe das Forças Armadas, o governador não o é de suas polícias. Sua orientação está a cargo das secretarias estaduais de segurança, mas o controle é repartido entre o governador e o Exército ou, em última instância, seu comandante, Bolsonaro.
A consternação dos meios militares com a insubordinação consentida dos policiais é lastreada nessa baderna legal. Ao fraquejar na imposição de sua autoridade, o ministro Sergio Moro já perdeu o prestígio de que desfrutava no generalato. Não é entrando no presídio da Papuda, hoje sob GLO, num tanque de guerra, que o ministro o recuperará.
Nenhuma autoridade preocupa mais os generais hoje, no entanto, do que o presidente da República. A inquietação foi ampliada com a convocação para a manifestação do dia 15. O último artigo de Fernando Henrique Cardoso em “O Estado de S.Paulo” sugere que o ex-presidente foi porta-voz dessa preocupação: “Não é para ‘dar um golpe’ que os militares aceitam participar do atual governo. Sentem sinceramente que cumprem uma missão... O risco para a democracia e para as próprias Forças Armadas é que se borre a fronteira entre os quartéis e a polícia”.
Essa fronteira estará tanto mais em risco quanto maior for a dificuldade de a economia brasileira reagir. O comediante da porta do Alvorada não representa o desdém do presidente apenas pela pauta do crescimento. Se não for capaz de fazer o país crescer, como sugere o PIB de 2019, o presidente pode se valer da imprudência de sua guarda pretoriana para fazer graça com a Constituição.
Daí porque o ministro Paulo Guedes, que já havia perdido apoio no Congresso, no empresariado e nas finanças, está sem lastro no generalato palaciano. Seu preferido é o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, coringa de técnico com formação militar e trânsito legislativo. É uma tentativa de garantir que o governo Bolsonaro possa acabar como começou, pelo voto. Ou não.
Nenhum comentário:
Postar um comentário