Bolsonaro tem culpa nesse cartório, porque protagoniza polêmicas nas quais o governo não tem a menor chance de sair ganhando. Transforma em gigantes adversários que combatiam à sombra, como o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, no caso da morte do pai, Fernando Santa Cruz, durante o regime militar, e o quase nonagenário cacique caiapó Raoni, que virou do dia para a noite um forte candidato ao Nobel da Paz. Sua implicância preconceituosa com artistas, ambientalistas, ativistas dos direitos humanos, jornalistas e gays não acrescenta absolutamente nada ao desempenho positivo de seu governo, somente aumenta a fricção com setores que formam opinião pública na velha e nas novas mídias.
Nicolau Maquiavel já dizia que o sucesso do príncipe depende da virtù e da fortuna. Quando a fortuna muda, certas virtudes viram defeitos que podem até ser fatais. Indiscutivelmente, Bolsonaro é um homem bafejado pela sorte, sua própria sobrevivência à facada em Juiz de Fora na campanha eleitoral serve de exemplo. Além de milagroso (Bolsonaro acredita nisso piamente), o episódio foi decisivo para que o “mito” se tornasse imbatível na eleição. Nesse quesito, portanto, não há adversidade. Exemplo de ambiente favorável ao governo é a blindagem patrocinada pelo Congresso ao ministro da Economia, Paulo Guedes, entre outras coisas, com a aprovação da reforma da Previdência, que deve ser concluída neste mês.
O problema é a virtù mesmo. Em certa passagem das Mil e Uma Noites, o vizir diz à filha Xerazade: “Aquele que não prevê as consequências dos seus atos não pode conservar os favores do século”. É aí que mora o perigo para Bolsonaro. Seu problema não é a oposição, ainda que sua retórica procure manter a polarização com a esquerda tradicional e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que cumpre pena em Curitiba, por considerar a estratégia eleitoral mais segura para a reeleição. Exemplo: a política ambiental, na qual o governo corre atrás dos prejuízos e continuará correndo por um bom tempo. Agora, sua política indigenista agride o grande legado do marechal Cândido Rondon, dos irmãos Villas Boas e de Darcy Ribeiro, entre outros. E pode reverter o crescimento da população indígena no Brasil, que é a medida do sucesso da estratégia de demarcação de suas terras.
Nesse rumo, é previsível o aumento de casos de suicídios, mortes por doenças e assassinatos de líderes indígenas em conflitos violentos com madeireiros e garimpeiros. Se isso de fato ocorrer, aliado à redução da população indígena, estará caracterizado um genocídio. Bolsonaro subestima a repercussão internacional que isso pode ter, assim como o papel do índio na formação da identidade nacional. Não se dá conta de que todo brasileiro fala a língua dos índios, na nossa culinária, na toponímia e até mesmo no hábito de tomar dois ou mais banhos por dia. No Brasil, as famílias miscigenadas são a maioria, raras não têm o arquétipo de uma “tataravó” índia que pitava no quintal e fazia beiju.
Mas o ponto mais fraco de Bolsonaro ainda é a economia. Herdou 13 milhões de desempregados e uma curva ascendente de desigualdade, na qual apenas 2,7% das famílias acumularam 20% do total da renda entre os anos de 2017 e 2018, segundo pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na sexta-feira. As famílias brasileiras tiveram uma renda média de R$ 5.426,70, porém, 23,9% delas viviam com um orçamento mensal de até dois salários mínimos. Esse percentual corresponde a um contingente com cerca de 44,8 milhões de pessoas em 16,5 milhões de famílias. Por possuírem os mais baixos valores recebidos, representam apenas 5,5% da renda nacional, ainda que as transferências governamentais respondam por 19,5% do total de renda do brasileiro.
Focada no equilíbrio fiscal, na desregulamentação do trabalho e na simplificação tributária, a política econômica de Bolsonaro aposta no mercado para enfrentar os problemas do trabalho e da renda, sem se dar conta de que o “tatcherismo” se esgotou e agravou a desigualdade no mundo. O melhor exemplo é a Inglaterra, país desenvolvido, cuja renda média está abaixo dos indicadores da União Europeia, que ainda tem regiões de médio ou baixo desenvolvimento. No seu livro Desigualdade, o que pode ser feito?, o economista britânico Anthony B. Atkinson mostra que é impossível combater a desigualdade sem a intervenção do governo e a mobilização da sociedade, isto é, poupadores, investidores, trabalhadores e empregadores. Acontece que o envelhecimento precoce do governo abriu esse debate e antecipou a principal agenda eleitoral de 2022, ao lado da defesa da democracia.
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