Marcelo Crivella foi um sacripanta. Mas, sobretudo, foi calculista. Sabia exatamente o que aconteceria e que seu nome seria comentado em todo o país e até internacionalmente, pois a HQ é da editora Marvel. Buscou se cacifar junto ao público-eleitorado conservador. Não quis perder terreno na corrida que vem sendo disputada no Brasil e que teve etapa quente na Semana da Pátria: a dos cavaleiros das trevas.
Na terça-feira, o governador de São Paulo, João Doria, mandou recolher apostilas em que se reproduz conteúdo produzido pelo Ministério da Saúde sobre “identidade de gênero”. Esse conceito trata de dissociar biologia e sentimento. Para os cavaleiros das trevas, porém, homem que nasce homem é homem; mulher que nasce mulher é mulher. O resto é desvio e, de preferência, silêncio. Freud explica tamanha obsessão pelo que os outros fazem com os próprios corpos.
Doria recorreu à falácia caça-votos da ideologia de gênero, que, na visão de cavaleiros como ele, seria uma espécie de catequese pró-homossexualidade promovida por esquerdopatas que querem violar a alma e o corpo de nossas crianças — no caso das escolas estaduais, crianças já com 13, 14 anos.
O governador, qual um Odorico Paraguaçu do Jardim Europa, bradou: “Vamos tomar as medidas punitivas. Quem fez será punido”. E lançou servidores municipais à missão de jogar material escolar em sacos de lixo . Logo se descobriu, segundo a Folha de S.Paulo , que na apostila havia as três páginas condenadas por Doria e mais 141 com lições de oito disciplinas, entre elas português, matemática, história e geografia.
Os adolescentes paulistas serão protegidos da impureza, mas talvez não da ignorância. Querendo ou não, Doria agiu como aliado de Jair Bolsonaro, que considera educação coisa de esquerda e que, portanto, precisa ser combatida. O desmantelamento das escolas, das universidades, das instituições científicas é o eixo do projeto de Bolsonaro. Sim, um projeto.
Ofender mulheres e exaltar torturadores é o arroz com feijão do presidente, a dieta que ele segue para se manter o craque do time de conservadores em que Crivella ainda busca lugar. Mas o projeto tem mais consistência. Almeja firmar o Brasil como pátria armada e obscurantista, gerida pelos fiéis seguidores da cavalaria (12% da população, segundo a última pesquisa Datafolha). Dessa pátria verde, amarela e sombria, devem ser exilados os gays que se beijam e toda a diversidade rebelde: negros e indígenas que não morrem calados, mulheres “feias” que mostram a cara, “paraíbas” que insistem em votar na esquerda, “veganos” que defendem as florestas, os artistas, os professores. Será o império dos ressentidos.
No sábado, vendo que a reação ao ato censor de Crivella foi muito forte, Doria encarnou o papel do policial bom e disse que o prefeito do Rio “exagerou, foi além do que poderia ter ido”. Se tivesse apenas mandado material escolar para o saco, aí tudo bem.
O governador paulista quer virar presidente atraindo parte dos fãs ardorosos de Bolsonaro, mas sem tirar totalmente o segundo pé da civilização. Precisa dela para manter o penteado de homem liberal, cosmopolita, de alternativa bem trajada a algum homem das cavernas vestido com a camisa da seleção.
Seu colega do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, não tem essas frescuras. A visão política é a mesma de Bolsonaro: Deus acima de tudo, violência policial em cima de todos. De todos os que não sejam “cidadãos de bem”: pretos, pobres, gente que trabalha em favela — como um pedreiro fuzilado na terça 3 na Vila Kennedy (Zona Oeste).
Na sanha de abrir alas para as milícias passarem, a polícia fluminense fez, também na terça-feira, outra operação ruidosa na Cidade de Deus. Um blindado saiu arrastando barracos de pessoas que vivem numa das áreas mais pobres da favela. No mesmo dia, um cabo da PM foi morto num confronto no Complexo do Alemão, tornando-se outra vítima da falsa guerra entre lei e crime — na verdade, é uma guerra entre polícias/milícias e a maior facção do tráfico de drogas no estado. Na quinta-feira (5) e na sexta-feira, as ações foram no Complexo da Maré, matando ao menos duas pessoas, e também destruindo casas. Mal apareceu na imprensa.
No 7 de setembro, Bolsonaro presidiu a cerimônia em Brasília enquanto, no Rio, Witzel passeava num tanque de guerra usando a faixa que ele mandou confeccionar para si próprio. (Freud também deve explicar essa fixação em fardas e faixas.) Na sexta-feira, o governador foi chamado duas vezes de “fascista” em aparições públicas. Numa delas, ficou tão revoltado que rebateu com uma ofensa pesadíssima: “Maconheiro!”.
Pode ser que, fazendo as contas, Witzel ache que ser tratado como fascista renda alguns pontos na corrida contra os outros cavaleiros das trevas. A jornada é longa, e nada os distrairá: desemprego, fome, saúde pública, direitos trabalhistas. O apocalipse é o limite.
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