quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Amazônia: algumas lembranças

Perdi a conta de quantas vezes fui à Amazônia. Estive lá ainda em 1977, para fazer uma reportagem sobre os 20 anos da Zona Franca de Manaus, e fiquei no Hotel Tropical, estalando de novo, numa praia deserta e longe de tudo. Da última vez em que o visitei, a praia já estava parecida com a Barra, com edifícios de uma ponta a outra, e o velho hotel era apresentado como uma antiguidade.

No começo, havia bichos soltos pelos jardins, entre eles um mutum por quem me apaixonei. O mutum é um pássaro preto grande, como uma galinha de pernas mais compridas, com penas cacheadas no cocuruto. O “meu” mutum me seguia por toda a parte, comia na mão e baixava a cabeça para receber carinho.

Quando vejo fotos da floresta queimando, penso imediatamente nos bichos, mas penso sobretudo neste mutum em particular, competente embaixador da sua espécie, que me fez amar todos os demais mutuns.

Voltei ao hotel pouco depois, e perguntei por ele. Ninguém se lembrava, afinal era só um pássaro entre tantos. Os bichos, antes soltos, agora estavam em jaulas e viveiros, porque hóspedes haviam reclamado da sua presença. Havia meia dúzia de mutuns presos e tristes; nenhum era o “meu”.

Naquela primeira ida de 1977, fui conhecer a floresta, num típico programa de turista: um barco nos levou até o encontro das águas. Durante todo o percurso, fomos abordados por canoas que traziam gente vendendo frutas e artesanato, além de filhotes de papagaios e araras. Parei em restaurantes flutuantes onde índios exibiam jacarés, preguiças e jiboias. Sopa de tartaruga já era proibido naquele tempo, mas todos a serviam mesmo assim.

Ao longo dos anos voltei várias vezes a Manaus, fui diversas vezes a Belém, estive em Rondônia e no Acre. Ouvi uma cantoria inesquecível de sapos perto da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em Porto Velho, e vi a maior quantidade de aves da minha vida entre Xapuri e Epitaciolândia, que é colada com Brasileia, um brinco de limpa e bem cuidada.

Lá do outro lado fica Cobija, na Bolívia, mais rica e maior, mas mais selvagem e mal frequentada.

Vi queimadas também. Vi quilômetros de terra arrasada. Andei por estradas em que praticamente só se via devastação — árvores derrubadas, fumaça, fogo. Sobrevoei pastos infinitos, em que não havia mais uma árvore para contar a história, e outros em que, aqui e ali, meia dúzia de árvores continuavam de pé, não sei exatamente por quê, lembrando o que havia antes.

Fui picada por insetos, comi peixe e farinha, senti tanto calor que, uma vez, achei que o meu cérebro estava fervendo, e tive a sensação de que eu não era mais uma pessoa, mas duas, uma andando, a outra observando, de algum lugar, a primeira se mexer. A parte não cozida do cérebro me avisou que aquilo era provavelmente uma insolação, e que eu deveria procurar sombra e água.

Lembrei de tudo isso porque, por esses dias, não há como não lembrar. Mas às vezes penso que eu gostaria de viver num país normal, onde lembranças fossem despertadas apenas pela nostalgia, e onde declarações e ações presidenciais causassem no máximo tédio, e não asco e vergonha.

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