sexta-feira, 5 de julho de 2019

Quando a seca criou os 'campos de concentração' no sertão do Ceará

Retirantes, Cândido Portinari 
Conceição atravessava muito depressa o Campo de Concentração. Às vezes uma voz atalhava:
- Dona, uma esmolinha….
Ela tirava um níquel da bolsa e passava adiante, em passo ligeiro, fugindo da promiscuidade e do mau cheiro do acampamento.
Que custo, atravessar aquele atravancamento de gente imunda, de latas velhas e trapos sujos!








No romance O Quinze, a escritora Rachel de Queiroz (Fortaleza, 1910) narra a seca histórica de 1915 que castigou o Nordeste brasileiro e descreve parte do que foram os chamados campos de concentração da seca. Embora não fossem campos de extermínio, como logo depois seriam criados na Alemanha, os campos de concentração espalhados pelo Ceará no início do século XX tinham ao menos um objetivo equivalente ao nazista: isolar dos demais a população indesejada, a “gente imunda” que tentava sobreviver à seca do sertão fugindo para a capital.

Desses campos, que no século passado confinaram a fome, a miséria e doenças, pouca coisa sobrou. É o município de Senador Pompeu, uma cidadezinha de quase 30.000 habitantes, a 270 quilômetros de Fortaleza, o único que ainda guarda ruínas daquela época. E se antes era símbolo da pobreza, hoje o local se prepara para ser tombado como patrimônio histórico. A oficialização deve ocorrer com toda pompa e cerimônia até o final do mês na Prefeitura da cidade.

O primeiro campo surgiu em Fortaleza em 1915. Naquele momento, a capital cearense ostentava uma elite de intelectuais e empresários que ainda colhiam os frutos do boom da exportação de algodão do século anterior. Mas junto a essa eufórica burguesia, chegavam à cidade também retirantes da fome, potencializada pela grande seca de 1877. O crescimento de habitantes elevou Fortaleza à sétima maior população urbana no país na virada do século XIX para o XX. E com isso, vieram também medidas higienistas.

Na zona oeste da cidade, o governador Benjamin Liberato Barroso construiu o primeiro campo, chamado Alagadiço. Em tese, a proposta inicial era abrigar os refugiados dando-lhes mínimas condições de sobrevivência. Durou o ano todo de 1915, até ser desativado em dezembro. Mas essa não seria o fim da história. Uma nova estiagem acometeu o Nordeste em 1932 e desta vez, outros sete campos foram espalhados estrategicamente em rotas de migração pelo Estado do Ceará, impedindo assim a chegada à capital. Eram instalados próximos às linhas férreas, por onde os retirantes tentavam chegar a Fortaleza. Nas estações de trem, eles eram encaminhados para os campos, com a promessa de trabalho. Sem nenhuma outra opção, seguiam a rota.

Cemitério do 'campo de concentração' em Senador Pompeu (CE).
Cemitério do 'campo' em Senador Pompeu, porque nem mesmo
os flagelados eram enterrados junto aos demais (Henrique Kardozo)
Frederico de Castro Neves, professor de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), lembra que, além da proximidade às ferrovias, os campos eram instalados sempre ao redor de alguma obra estrutural, o que atraía a mão-de-obra. “O campo estava vinculado a uma obra pública, a uma situação de trabalho”, explica. E Senador Pompeu era um dos municípios que obedeciam a essa arquitetura. Ali, a companhia inglesa Norton Griffiths & Company se estabeleceu na década de 1920 para construir a barragem do açude Patu. As obras foram interrompidas na década seguinte e sobraram somente as construções, como a casa da administração, o ambulatório, estação de trem e a casa das máquinas, hoje, as poucas ruínas que restaram dessa história.

Era ao redor dessa estrutura que viviam, em espécies de barracas, os flagelados da seca. “Aqui nesta janela, era onde eles faziam filas por um punhado de comida”, explica Valdecy Alves, um advogado nascido em Senador Pompeu e que se autointitula "militante dos movimentos sociais", ao chegar no casarão que era a sede da antiga administração da companhia. “A comida era uma mão cheia de farinha, rapadura, sal, café torrado no sangue de boi para aumentar a quantidade de ferro e, às vezes, uma bolacha”, diz, sob um sol fortíssimo, em meio às ruínas.

Vestiam-se com sacas de farinha, os cabelos lhes eram raspados e viviam submetidos a condições de higiene e limpeza extremamente precárias. Assim, morriam aos montes, de fome, sede e doenças. Os flagelados da seca viviam tão à margem da sociedade, que nem mesmo seus cadáveres se misturavam aos demais. Por isso, a poucos quilômetros da casa da administração fora construído um cemitério somente para essas vítimas. “Não se misturavam os demais mortos da cidade”, conta Alves.

Mas, com o tempo, as almas dessas vítimas foram consideradas divinas. “Até hoje vem gente aqui no cemitério pagar promessa”, conta Alves, apontando para o muro branco de doer os olhos sob a luz do sol. “Todo ano vem uma pessoa aqui e pinta este muro em pagamento de alguma promessa". As almas da barragem, como são chamados os que morreram naquele local, são louvadas em um evento anual realizado em homenagem a elas, a Caminhada das Almas, uma romaria que ocorre todo mês de novembro desde 1982.

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