O bolsonarismo tem fortuna própria e invulgares recursos de espraiamento. Não pode ser analisado, por exemplo, sem a compreensão da maneira decisiva como a Lava-Jato — por meio de seu subproduto político-eleitoral, o lava-jatismo — ofereceu carne para a campanha, de tessitura bolsonarista, que criminalizou a atividade política, donde se explica o modo como a fé anticorrupção foi equipada partidariamente, isto a ponto de haver sido apropriada pelo novo governo, na estampa de Moro.
Referi-me ao bolsonarismo como força antipolítica que preside o país. Esse motor dirigente não é, contudo, o presidente; mas a mentalidade, a gramática discricionária, que influencia — sem outra comparável — Jair Bolsonaro. O bolsonarismo não é, pois, o governo Bolsonaro, cindido em grupos precariamente arranjados, mas aquilo que o condiciona e detém. Um sistema antidemocrático e anti-intelectual, de índole reacionária e têmpera para a revolução, que se funda em rara capacidade de mapear, acolher e manipular ressentimentos, e que opera sob o combustível da campanha permanente — do conflito constante — em prol de um projeto autoritário de poder, de vocação autocrática, cujo êxito depende da depredação progressiva das instituições republicanas sem, entretanto, prescindir do gatilho legitimador eleitoral.
O bolsonarismo precisa tanto do ímpeto para a fratura, para a desqualificação de símbolos de independência institucional, quanto do voto, ícone da normalidade democrática e mecanismo revigorante para a imagem do líder populista. Sua essência é interventora, centralizadora e intimidadora. Trata-se de um complexo para a ruptura, talvez mais uma orientação discursiva incendiária do que um desejo real de incêndio — algo de norte incontrolável, diga-se, como mostra a lista histórica de revolucionários enforcados pela própria revolução.
A revolta dos caminhoneiros, de maio de 2018, ilustra essa efusão pelo caos. O bolsonarismo é a revolta dos caminhoneiros, levante que soube distinguir e que encampou com engenho, e por meio do qual testou hipóteses sobre até onde se poderia esticar a corda da pressão popular em rede e instrumentalizá-la contra o establishment. Aquela mobilização criminosa, evento pré-eleitoral, foi destacado componente na cesta de insatisfações e falências que resultaria na eleição de Bolsonaro.
Forja de crises e de inimigos, força iliberal, à margem de qualquer política pública, que atua desde dentro da máquina estatal para localizar e explorar qualquer projeção de instabilidade onde carcomer o equilíbrio institucional, o bolsonarismo, também uma linguagem, está no comando, espaço ocupado a partir da campanha, e é o agente condicionador do governo, daí por que jamais se deveria esperar — sob tal conformação — que Bolsonaro pudesse encarnar a urgente pacificação política nacional.
Insisto, no entanto, em que não se deve observar o que está em curso com os olhos engessados do século XX, como se estivéssemos diante de uma marcha ditatorial que suprimirá liberdades e fechará o Congresso. O bolsonarismo avança para comprimir, e sempre precisará do que comprimir, de resto porque promove a insólita limpeza que aparelha para desaparelhar. Este é seu modus operandi: como o cupim, mina as bases, corrói os pilares, mas sem desarmar a carcaça. Precisa do aparato democrático em modo de segurança, em versão econômica, tão somente funcional, para emparedar e subordinar tudo quanto possa ser apregoado como musculatura autônoma e ameaçadora.
Para dar corpo à mentalidade e figura às práticas: Carlos Bolsonaro é mais bolsonarista do que Jair Bolsonaro; Eduardo Bolsonaro, idem — e é a ação deste filho, respaldada pela guerrilha daquele, que será lastreada pelo bolsonarismo.
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