Nada disso aí é fácil. Aceitar o outro, diferente, sem que ele seja o “inferno”, como definiu Jean-Paul Sartre na peça Huis Clos (Entre Quatro Paredes), é norma básica de convívio social e condição sine qua nonpara o exercício do governo democrático em nome do povo, com o povo e para o povo, como manda a Constituição. Quem detém o poder tem a obrigação da iniciativa: é quem estende a mão. Afinal, o poder político numa República (res publica, coisa do povo em latim) dita representativa não pode ser exercido de forma indiscriminada, de cima para baixo, como nas tiranias. Mas, sim, com o respeito à Constituição, em primeiro lugar, e às leis e instituições em geral. Em nosso específico caso, pelo menos em teoria, o monopólio da força em mãos do Estado, sob a chefia do mandatário-mor, escolhido pelos cidadãos aptos a votar, não é absoluto, mas relativo. Na moderna escola institucional, estabelecida desde os tempos da Revolução Francesa, em 1792, há equilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário, como imaginou Montesquieu. O primeiro governa e executa as leis, criadas pelo segundo e sob julgamento do terceiro. E aí é que está o que padre Bernardo, meu inesquecível professor de Latim e Lógica (e a Matemática é uma ciência do raciocínio lógico) no seminário redentorista de Bodocongó, em Campina Grande, chamava de busílis.
Por falar em Campina Grande, na Paraíba, onde passei minha adolescência, a turminha que se reunia todas as noites, depois da sessão de cinema no Capitólio, proseava na praça do Rotary, bem em frente, e criou um jargão particular. Chamava, por exemplo, de Belém-Brasília qualquer mulher alta, magra e desprovida de curvas nas ancas, como a estrada que ainda gozava as famas das primícias. O mesmo vale para essa palavra imensa, caquética e feiosa que é governabilidade. Por mais desacunhada (desajeitada, como se dizia naquela roda implacável) que ela seja, tem caprichos de formosa donzela e poder de sedução de beleza ímpar. Sem governabilidade, na República de Montesquieu, ninguém governa, com o perdão do trocadilho infame e pleonástico. Em nosso caso, costuma-se exigir isso apenas do chefe do governo, principalmente, como é o caso de Jair Bolsonaro, eleito por maioria de 10 milhões de votos sobre seu adversário, o presidiário Lula, representado pelo boneco de ventríloquo Haddad, como se só a ele coubesse a obrigação da moderação e da humildade: estender uma mão à outra e abraçar quem tenta apunhalá-lo.
Não é bem assim. A obrigação é de todos, a começar das instituições representativas do poder republicano. A primeira delas é o Congresso. O mostrengo do presidencialismo de coalizão, gerado e cevado pelo tucano Fernando Henrique em seus oito anos de dois mandatos e seguido à risca pelos sucessores petistas,Lula e Dilma. Este, em que se compra apoio e se combate a oposição ferozmente, acabou virando mais propriamente “de colisão”. E pode explodir como bomba nas mãos que Bolsonaro estendeu na igreja apropriadamente intitulada Atitude, no domingo 4 de novembro, no Rio. No caso dele, a barroada (sinônimo vulgar de abalroamento) promete aparecer atravessando o sinal fechado na esquina.
Do ponto de vista ideológico, o carro desgovernado na contramão é conduzido por uma esquerda feroz, impiedosa, mentirosa, rapace, irresponsável, leviana e impatriótica. Ela já se manifesta na intolerância com que se apresenta ao transe, corruptela de transição, termo mais suave para definir a travessia do ex-governo em extinção para o futuro. E sob a mira dos snipers que não aceitam a derrota no voto, com que pretendia consagrar a impunidade de seu líder-mor, Lula, ladrão e lavador de dinheiro, assim definido por definitiva decisão da segunda instância do Judiciário, um dos Poderes autônomos da República. André Singer, professor da USP e ex-porta-voz do corrupto, no artigo A hora mais escura, não deixa por menos: “A maioria nas urnas dá mais poder aos antidemocratas do que os tanques de 1964”, Cumpre-se, segundo o titular de Ciência Política na mais venerada escola superior pública do País, a profecia de sua colega filósofa Marilena Chaui, que, em entrevista à revista Cult falou de uma ditadura mais nociva às instituições do que a militar. Parece piada de mau gosto, mas é sério. Trêfegos discípulos aloprados estenderam em seus câmpus, no País inteiro, faixas com paródias de Sílvio Santos: “O fascismo vem aí”.
A mídia, que a esquerda e Bolsonaro execram, não noticiou, contudo, presença de tropas de assalto,pogroms em bairros judeus nem noites dos cristais, com quebra-quebra de vidraças de lojas dos herdeiros de Abraão. Isso aconteceu na Alemanha de Weimar, prenúncio do nazismo de Adolf
Hitler, personalidade política favorita de Lula, quando era líder sindical, em entrevista à Playboy. Mas o PT não faz oposição e, sim, “resistência”, como se opuseram os franceses à invasão alemã na 2.ª Guerra. E a palavra golpe voltou a ser usada, como se o partido sob cuja égide foi promovido o maior saque ao erário da História tivesse o direito sagrado de representar o povo, mesmo quando este se manifesta, como aconteceu, contra essa contrafação de monarquia populista. Eis a oposição que o presidente eleito enfrentará daqui a dois meses, após ser empossado.
E há outra, sub-reptícia, sibilina e ao abrigo da mais que poderosa Câmara dos Deputados. Em 5 denovembro passado, o Estado publicou em manchete de primeira página: 1/3 do Congresso eleito responde a processos na Justiça. Esse terço é o remanescente reduzido da maioria silenciosa que resiste ao combate à corrupção pela banda sadia da polícia, do Ministério Público e da Justiça e, protegida pelo foro privilegiado, não entregará ao inimigo a rapadura, que não é mole, mas é doce.
Para tanto contará com a cumplicidade da cúpula do Poder Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal (STF). O presidente deste, ministro Dias Toffoli, prega um pacto, mais bem definido no título da chamada de primeira página do Estado de domingo 4: STF prevê protagonismo maior em novo governo. São sete os profetas da “nova aliança”: além do presidente, o decano Celso de Mello, o indefectível Marco Aurélio Mello e mais quatro embuçados em sua fantasia de morcego máximo. Sob o selo Jurisprudência, a manchete do Globo de segunda-feira 6 é mais explícita: STF resiste a propostas de Bolsonaro sobre prisões.
O deputado federal reeleito pelo PSL de São Paulo com 1.843.735 votos, a maior votação para a Câmara da História, disse ao Globo: “A gente fez um pacto: a gente não vai para a cadeia. A gente não vai cair na mão do Sergio Moro nem da Lava Jato. Se o partido colocar a faca no pescoço: ‘O partido tal vota se tiver o ministério tal’, sinto muito, mas não vai ter. Será que eles conseguem aprovar o impeachment de um presidente recém-chegado? Olha para o Collor e para a Dilma. Como estava a popularidade deles quando receberam o impeachment?”. Gente, se a promessa for cumprida, este será o bom primeiro passo na direção desejada para o novo governo, mas não será tudo. A governabilidade dependerá de paciência, tolerância e disposição infinita para o diálogo. Sem essas preliminares será difícil vencer “resistências” no Congresso e no STF.
José Nêumanne
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