sábado, 4 de agosto de 2018

Um dia virão para nos comer

Uma atleta de origem nigeriana, Daisy Osakue, grande esperança do atletismo italiano, foi atacada na pequena cidade piemontesa de Moncalieri por um grupo de racistas. Como Daisy é uma figura conhecida em Itália, o ataque desencadeou um debate, expondo um cenário horroroso de agressões racistas.

Segundo dados divulgados pela agência das Nações Unidas para as Migrações, a Itália vive um pesadelo, com dezenas de ataques de todo o tipo a africanos e ciganos. O crime mais grave desta onda de ódio racista ocorreu a 2 de junho, em Calogero, na Calábria, quando um jovem sindicalista negro, Soumaila Sacko, foi assassinado com um tiro na cabeça.

Matteo Salvini, o lamentável ministro do Interior italiano, líder do partido de extrema direita Liga (ex-Liga Norte), desvalorizou as tragédias, que atribuiu à “imigração em massa permitida pela esquerda nestes últimos anos.”


Nunca deixo de me espantar com o apoio de muitos portugueses e brasileiros às medidas anti-imigração, abertamente racistas, de governos como o italiano, o húngaro ou o austríaco. O meu espanto é o mesmo com que olharia um porco que fizesse o elogio dos lobos. Imagino o dito porco refestelado na lama da sua pocilga enquanto escuta o aflito alarido de outros suínos, sendo atacados por lobos, na floresta ao lado: “Os lobos estão certíssimos.” — Comentará o porco. — “Afinal de contas os lobos precisam de comer. E o que eles comem? Porcos.”

“Acontece que você é um porco!” — Lembrará o cachorro velho.

“Não sou um porco como esses! Sou um porco limpo, sou um porco de boas famílias. Vivo numa pocilga.”

“A carne de um porco de boas famílias sabe tão bem quanto a de um porco selvagem.” — Lembrará o cachorro velho, já de saco cheio do porco burguês. — “Um dia eles virão para te comer.”

Há muitos anos, quando vivia em Lisboa, estudando silvicultura, decidi aproveitar alguns dias de férias para conhecer Paris. Não tinha dinheiro para avião e fui de ônibus, uma viagem longa e dura. Não havia entre os meus companheiros de viagem um único turista. Todos eram emigrantes portugueses, regressando aos respectivos postos de trabalho, em terras de França. Conversavam entre si num português torto, carregado de palavras e expressões que um dia haviam sido francesas, sobre a difícil experiência de viver e trabalhar num país estranho. Queixavam-se do desprezo e da arrogância com que eram tratados pelos franceses. Sentia-me solidário com eles. Até que, a certo momento, alguém começou a falar dos imigrantes árabes em França. A conversa mudou imediatamente de rumo, sucedendo-se as piadas racistas contra árabes e muçulmanos em geral.

Esforcei-me, sem o menor sucesso, por lembrar que eles estavam no mesmo barco dos árabes, eram todos imigrantes: um racista francês não separa as pedras, as mais brandas para os portugueses ou brasileiros, as mais duras para os árabes, quando sai de noite para caçar imigrantes.

O medo do outro é parte da natureza humana. Nunca alimentei ilusões em relação a isso. O problema é a exploração política de tais medos e rancores. Quando dirigentes políticos diminuem ou ignoram incidentes racistas, estão a legitimá-los. É contra essa legitimação do mal que temos de lutar.

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