sexta-feira, 17 de agosto de 2018

A saga dos moradores de rua em São Paulo por um copo d'água

O termômetro marcava 13ºC quando Maria Elisabete da Silva, de 31 anos, acordou na madrugada com o choro de seus dois filhos, que se queixavam de sede. Ela abriu uma fresta na barraca de camping onde mora e notou, preocupada, que os baldes de doce de leite e maionese que a família usa como caixa d'água estavam vazios. Na barraca de Elisabete, embaixo do viaduto Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, vivem 11 pessoas; sua irmã, Soraia, de 30 anos, é mãe de outras sete crianças.

Em entrevista à BBC News Brasil, as duas mulheres contaram que, no mês passado, já precisaram racionar por quatro dias uma garrafa de 2 litros de água para toda a família. A água foi usada prioritariamente para escovar os dentes e diluir o leite em pó para amamentar um bebê de apenas 25 dias de vida, que também mora na barraca.

Na ocasião, depois de quatro dias vendo os filhos sem banho por falta d'água no último mês, as duas mães tomaram uma decisão que elas mesmas definem como "desesperadora". "Pegamos a lona da barraca e amarramos dos dois lados para aparar a água da chuva. Depois, a gente despejou num balde e deu banho nas crianças. Só não precisamos beber essa água graças ao menino do mercadinho ao lado que nos ajudou. Mas banho já precisou. E não foi só uma nem duas vezes", afirma Silva.

Eliana Toscano de Araújo, formada em Letras e moradora
de rua há três meses, diz que quanto melhor
a aparência, mais fácil é conseguir água 
Durante uma semana, a reportagem conversou com dezenas de moradores de rua para saber o que eles fazem para beber, armazenar e transportar água em São Paulo, metrópole que tem enfrentado longos períodos de seca e teve sua maior crise hídrica há dois anos. A maior parte relata ficar sem água quase que diariamente e diz que o problema se agrava à noite, durante feriados e finais de semana - quando a maior parte do comércio fecha. A população de rua também reclama da falta de torneiras e bebedouros públicos.

Silva, por exemplo, relata que já viu pessoas bebendo água do esgoto e que já viveu diversas situações de insalubridade para matar a sede.

"Você é obrigado a pedir para uma pessoa que não tem higiene nenhuma. Uma bebezinha tomar leite (em pó diluído) com resto de água dos outros é embaçado. Você daria isso ao seu filho?".

Ela defende que sejam instaladas tendas que ofereçam banho a moradores de rua em pontos estratégicos da cidade. "Pode ser gelado mesmo. Nós não somos bichos, só queremos ficar limpos. Já que o governo não me ajuda em nada, poderia fazer ao menos isso", queixa-se. "Já mostrei que tive dez filhos e não consegui a operação (laqueadura), não recebo Bolsa Família nem nada".
Cobertores, marmitas e água

Com poucas opções para conseguir água por conta própria - a opção mais comum é recorrer a nascentes e torneiras externas de alguns prédios públicos -, os moradores de rua dependem da sorte e da ajuda de voluntários para ter acesso a água limpa.

O comerciante Eduardo Lira Junior é uma das pessoas que fazem esse trabalho social de forma voluntária. Ele é dono de um mercadinho e, além de ajudar a família de Maria da Silva, permite que outros moradores de rua encham seus baldes, galões e garrafas na torneira do comércio.

Junior conta que os moradores de rua não incomodam e pedem água apenas em dois horários para não atrapalhar as vendas: logo cedo, quando a loja está sendo aberta, e pouco antes de fechar.

"Desde que não me prejudique, eu faço questão de ajudar as pessoas. É só água, que eles precisam para beber e tomar banho. Então, a gente faz questão de ceder. Não tem nenhum motivo plausível para você negar água para alguém", afirmou ele.

A psiquiatra e membro do Comitê da População de Rua de SP Carmen Santana escreveu um livro sobre saúde mental dos moradores de rua e diz que a realidade dessas pessoas é muito semelhante na maior parte das cidades brasileiras, inclusive a dificuldade de acesso à água.

"Esse território é muito parecido. É um território de uma enorme exclusão e as pessoas vivem em condições muito parecidas", disse. Ela explicou que cidades diferentes podem oferecer padrões de vida distintos para pessoas que vivem em casas, apartamentos, ocupações e favelas. Já para os moradores de rua, que vivem "às margens, a condição é muito parecida em todos os lugares".

Ela conta que em 2017, na cidade de Teresina, no Piauí, um morador de rua foi impedido de entrar no único centro de convivência que existia na cidade para tomar banho porque ele estava alcoolizado.

"Então, ele resolveu entrar num rio (para tomar banho) e morreu afogado", conta a psiquiatra, que também é professora do departamento de saúde coletiva da (Universidade Federal de São Paulo) Unifesp.

A dificuldade para matar a sede é ainda maior de madrugada, quando grande parte dos comércios e postos de combustível fecha.

O guarda municipal Marcos de Moraes trabalha há dez anos na corporação e já recebeu homenagens por seu trabalho dedicado aos moradores de rua. Ele afirma à BBC News Brasil que diariamente encontra pessoas com sede, principalmente entre 0h e 7h.

"No momento em que a gente entrega cobertores para eles (moradores de rua), eles nos pedem comida, mas principalmente água. Por isso, carregamos algumas garrafinhas no carro", diz.

O guarda conta que, na semana anterior, encontrou um morador de rua cadeirante que dormia apenas com um cobertor fino enrolado no corpo. Ainda assim o homem disse que sentia mais sede do que frio.

Um balanço feito pelo jornal americano The New York Times apontou que a cidade de Nova York tem mais de 3 mil fontes e bebedouros públicos instalados em parques e ruas. A cidade italiana de Roma também tem mais de 2 mil bebedouros em espaços de grande circulação de pessoas. Os primeiros foram instalados em 1874, após pedido do prefeito Luigi Pianciani.

Paris, na França, tem mais de 1.200 bebedouros públicos. Londres, na Inglaterra, também iniciou uma política de instalar esses equipamentos para combater o uso de garrafas plásticas e saciar a sede não apenas de pessoas, mas também de animais de estimação em locais públicos. O mesmo ocorre no Chile.

São Paulo, a maior e mais rica cidade da América Latina, não tem nenhum bebedouro instalado nas ruas.

Procurada pela reportagem, a prefeitura informou que "há estudos para ampliar o número de bebedouros em locais públicos" e que o assunto chegou a ser discutido em 2016. A administração municipal afirmou ainda, em nota, que "para a implantação do projeto, é preciso de autorização da Câmara Municipal, o que não ocorreu até o momento."

A reportagem procurou também a Câmara Municipal que, no entanto, disse que não há nenhum projeto nesse sentido para ser votado.

Procurada novamente pela reportagem após a negativa da Câmara, a prefeitura recuou e disse que não existem projetos voltados ao tema da água potável gratuita. Por telefone, a assessoria de imprensa da administração municipal disse que existem apenas estudos, mas não apresentou nenhum deles ou deu previsão sobre quando alguma medida será proposta.

São Paulo é a cidade que concentra a maior população de rua do país. De acordo com os dados dos últimos dois censos, o número de moradores de rua aumentou de 14.478 em 2011 para 15.905, em 2015.

Nenhum comentário:

Postar um comentário