sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Sobre prometer e não cumprir

Acreditei nessa conversa mole/
pensei que o mundo ia se acabar/
e fui tratando de me despedir/
e sem demora fui tratando de aproveitar/
Beijei na boca de quem não devia/
peguei na mão de quem não conhecia/
dancei um samba em traje de maiô/
e o tal do mundo não se acabou

Assis Valente

As luzinhas de Natal não esperaram o Dia de Reis para empalidecer. Sob as chuvaradas de janeiro, os enfeites perderam seu brilho artificial, enquanto as promessas de Ano- Novo perderam a validade logo na primeira semana de 2018. Eram mentirosas. O saldo que fica das festas natalinas, hoje como antes, é sempre igual: cada um é o demagogo de si mesmo, o populista a explorar sua própria esperança; cada um tem o engenho de se enganar covardemente, anunciando recomeços que não recomeçam coisa alguma e proclamando juras que serão desmentidas antes mesmo que o sol apareça para queimar o resto das imposturas do Réveillon. O saldo é sempre o mesmo – e é sempre esquecido, para se repetir um ano depois.

O povo gosta de promessas impossíveis, tanto que, nas festas, empenha-se no autoengano. O cidadão vai lá, pula ondinhas na praia lotada (e imunda), mastiga sementes carregadas de agrotóxico, solta foguete, respira pólvora e promete o invariável ramerrão: parar de fumar, ser fiel, fazer as pazes com a tia rica, arranjar um emprego. Nada disso ele vai cumprir, é claro, mas, para se reanimar, ele depende daquela promessa sem lastro, como se a esperança só fosse possível para quem acredita em algum tipo de lorota.

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As eleições no Brasil guardam uma incômoda semelhança com as celebrações de Ano-Novo. Entre a contagem dos votos e o amanhecer do dia seguinte, os eleitores vitoriosos se comprazem em crer que a história do país será refundada e nada mais será igual. Há um prazer insubstituível em sorver esse tipo de crença, por menos que ele dure. Aí, quando tudo dá errado, as multidões se apressam em amaldiçoar “os políticos” por aquilo que não foi cumprido – mas as mesmas multidões se recusam a assumir a responsabilidade por ter acreditado nas promessas. Ato contínuo, passarão a jogar fé em outros políticos, a ponto de acreditar que esses outros políticos não são políticos.

Somos um país que não acredita na política, mas acredita religiosamente em Papai Noel. Há exceções, evidentemente. Uma dessas foi o sambista José de Assis Valente, que, na música “Boas festas”, emitiu nada menos que um atestado de óbito de Papai Noel: Já faz tempo que eu pedi/mas o meu Papai Noel não vem/Com certeza já morreu/ou então felicidade é brinquedo que não tem. No contexto da cultura política brasileira, a audácia de Assis Valente foi maior do que a de Nietzsche, que teria dito qualquer coisa acerca da morte de Deus.

A cultura política brasileira acredita mais em Papai Noel do que em Deus. Em lugar de ter fé num “ser superior”, a nação prefere crer num “ser publicitário superior”. Só mesmo o tal do “bom velhinho”, fantasiado com a cor da Coca-Cola, para dar conta de cessar os padecimentos dessa gente bronzeada que só mostra o seu valor quando batuca. E, por acreditar piamente em Papai Noel, o eleitor brasileiro embarca nas marquetolagens que embalam os candidatos para presente. Assim é no Réveillon, assim é nas eleições.

Num choro laçado em 1938, o mesmo Assis Valente caçoou desse negócio de sair por aí acreditando em qualquer disparate. Com o título de “E o mundo não se acabou”, a letra é a confissão de um sujeito que acreditou numa falsa profecia de apocalipse e se deu mal. Gastou o dinheiro que não tinha, permitiu-se certas indiscrições e se encrencou: Vai ter barulho/e vai ter confusão/porque o mundo não se acabou.

Em sua ironia, Assis Valente tem a elegância de não jogar a culpa em quem fez a promessa fraudulenta e toma para si a responsabilidade por ter acreditado na “conversa mole”. Por ser tão diferente, tão único, pagou um preço alto. Na sua trágica vida real, também se afundou em dívidas, em drogas e em excessos que o venceram e acabaram com o seu próprio mundo. Tentou o suicídio três vezes. Na terceira, em 1958, foi bem-sucedido ao beber formicida com guaraná. Tinha 46 anos.

O sambista suicida que não bajulou Papai Noel, que duvidou das promessas fáceis e que, apesar do sofrimento, cantou uma alegria sem mentiras (minha gente/era triste e amargurada/inventou a batucada/pra deixar de padecer), bem que poderia ser o patrono do ano brasileiro de 2018. Salve o prazer. Salve a verdade.

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