terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Povo rohingya: o êxodo perpétuo dos apátridas

As tendas de campanha no campo de refugiados de Kutupalong, no leste de Bangladesh, se transformaram na paisagem habitual daquela região. São habitadas majoritariamente por pessoas da etnia rohingya que fogem de Myanmar, seu país de origem. O êxodo começou há mais de cinco décadas. Uma perseguição religiosa – iniciada pela Junta Militar que governa a antiga Birmânia desde 1962 – provocou o corre-corre. E nada o conteve, nem sequer a abertura política birmanesa dos últimos tempos. Neste ano, o fluxo se multiplicou de forma dramática. Segundo a ONG Médicos sem Fronteiras (MSF), até 622.000 pessoas cruzaram a fronteira nos últimos quatro meses, e pelo menos 6.700 rohingyas morreram por causa da violência em agosto e setembro deste ano. Essas cifras alarmantes agravam uma crise social e alimentar que já existia há meia década, quando foi feita a foto que acompanham este artigo.

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De lá para cá, a paisagem não mudou, e as condições não melhoraram. A migração dos rohingyas nunca para. Esta comunidade muçulmana é apátrida. Sem terra nem direitos. Em Myanmar, que não os reconhece como cidadãos, eles são ameaçados, expulsos das suas casas e vítimas de estupros. Os integrantes da onda mais recente de refugiados apresentam ferimentos de bala, desnutrição e queimaduras. “As condições de vida nos assentamentos improvisados continuam sendo extremamente precárias e perigosas, o que coloca as pessoas em um risco ainda maior. Se a situação não melhorar, existe a possibilidade de uma emergência de saúde pública”, alerta o MSF.

O MSF já atendeu mais de 62.000 pacientes nos 15 postos de saúde construídos desde 25 de agosto. Todos estão distribuídos pela região de Cox’s Bazar, coração do turismo local. Aos seus 126.000 moradores (segundo um censo de 2007) somam-se mais de dois milhões da região, limite natural com Myanmar e principal zona de passagem para migrantes rohingyas. Um mapa fornecido pelas entidades humanitárias que trabalham em Bangladesh indica sete acampamentos: seis nesta província (cujo principal núcleo urbano é Chittagong, com 2,6 milhões de habitantes) e um na região de Daca, a capital bengalesa. Kutupalong está no primeiro grupo. Prevê-se que a população total desses assentamentos em breve superará um milhão. Em 2009, eram 50.000 pessoas. Um terço deles eram crianças, conforme recorda Javier Arcenillas, que registrou a comunidade rohingya na ocasião.

“Havia muito mais gente distribuída pelo país”, observa o fotógrafo. “Em Daca se falava do tráfico infantil para trabalhos sexuais, e outros se dedicavam a conduzir riquixás motorizados a ou trabalhos mais duros e menos remunerados. Havia como um sistema de castas.” A mesma impressão teve Olmo Calvo Rodríguez neste ano. O fotógrafo freelance foi a Bangladesh documentar a explosão migratória. Suas fotos dão calafrios: uma mulher jaz deprimida em meio a um campo ermo; uma família carrega um cadáver entre arrozais; centenas de mãos se elevam sob a chuva para conseguir água ou comida. Nas duas semanas de viagem, ele se comoveu com a enorme quantidade de gente por todos os lados. “Havia filas para tudo, e barracos eram construídos com canos, plásticos ou chapas – o que encontrassem no meio dos esgotos a céu aberto. Era um caos avassalador e completamente incontrolável”, relembra.

Calvo menciona também o leito do rio Naf, que delimita a fronteira entre Bangladesh e Myanmar. Milhares de rohingyas se amontoam diariamente às suas margens, esperando para cruzá-lo ou para ir a algum dos campos. Seus 62 quilômetros servem como uma separação natural entre estas duas nações do golfo de Bengala. A Junta Militar birmanesa e os líderes budistas do país acusam os rohingyas de serem oriundos dessa região, o que faria deles “imigrantes ilegais trazidos pelo Império britânico” e protagonistas de “uma invasão muçulmana”, como apontava, num artigo de 2013, Ashin Wirathu, principal monge de um templo de Mandalay, capital religiosa de Myanmar. Nem mesmo Aung San Suu Kyii, ganhadora do Nobel da Paz e hoje a principal autoridade do país, se pronunciou contra a limpeza étnica. E todos os ouvidos estavam atentos às palavras do papa Francisco quando ele visitou recentemente este país asiático; no final, o pontífice falou genericamente de respeito às minorias, mas só mencionou a palavra “rohingya” em uma reunião privada, e não no discurso oficial.

“Calcula-se que ainda restem 150.000 deles em Myanmar”, diz María Simón, coordenadora de emergências do MSF. A comunidade rohingya, em todo caso, não se concentra apenas em Myanmar, onde representam 6% dos 52 milhões de habitantes. Há também 200.000 deles residindo no Paquistão, outros 200.000 na Arábia Saudita, e 100.000 refugiados entre Malásia, Indonésia e Tailândia.

Simón, que voltou em setembro da região, narra os problemas no acolhimento e a desinformação. “A cada semana passam 7.000, e não se sabe o que vai acontecer”, afirma. “Os antigos refugiados e os novos estão misturados. Tenta-se que as famílias fiquem juntas porque é claro que vão permanecer neste país por meses”, lamenta, numa conversa por telefônica. As necessidades, argumenta, são de todo tipo: moradia, comida, água, saneamento, remédios. Felizmente, Bangladesh mantém uma política “de braços abertos” frente à opacidade birmanesa. “Contam histórias de povoados queimados, de massacres. Os depoimentos são muito fortes. Fogem desesperados da violência, mas com as condições daqui pode haver um surto de cólera ou de outra doença epidêmica”.

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