Reconhecida hoje como um marco da literatura barroca portuguesa, a “Arte de furtar” pareceu-me de uma atualidade arrebatadora. Em seus mais de 70 capítulos, o autor percorre o densamente povoado mundo dos crimes — este mesmo mundo.
O capítulo 60 trata de como “furtar com unhas políticas”; o 57, de como “furtar com unhas amorosas”; o trigésimo sétimo, sobre aqueles que “furtam com mãos de gato”; o capítulo 45, sobre aqueles “que furtam com unhas domésticas”.
A sátira é, como um todo, um maravilhoso guia sobre a criminalidade: “…e digo que este mundo é um covil de ladrões, porque, se bem o consideramos, não há nele coisa viva que não viva de rapina”.
Contudo, o intento do autor, explícito em suas dedicatórias, não era senão fornecer uma descrição detalhada das figuras típicas da corrupção para o bom discernimento do governante que se vê completamente cercado de suspeitos.
Teria a Vossa Alteza, El-Rei de Portugal, as condições de emitir juízos sobre uma arte da qual desconhece mesmo a superfície? Como ficaria o sereníssimo senhor príncipe atento aos artifícios sobre os quais ignora o método? Diz o tratado: “Não ensina ladrões o meu discurso, ainda que se intitule ‘Arte de furtar’: ensina só a conhecê-los, para os evitar”.
Para além das figuras mais óbvias presentes neste “teatro de verdades”, Manuel da Costa põe em evidência também a ganância dos exploradores europeus, e de como aqueles que perseguiam riquezas não eram diferentes dos que massacravam populações do outro lado do mundo.
Esboça-se quase uma crítica estrutural do poder, e de suas ramificações, no sistema econômico da época. Afinal, para o nosso autor, a arte de furtar é uma ciência verdadeira, quase sempre a serviço do poder.
É quase desnecessário dizer, mas o Brasil colonial aparece em diversos momentos do tratado.
Mas, excetuando-se algumas atualizações e progressos, a ciência da corrupção ainda seria familiar a ambos os jesuítas. Assim como também seriam familiares os esforços de muitos políticos poderosos, e seus cúmplices, de ofuscá-la.
Sem dúvida, muita coisa nos deixaria surpresos, suspeito eu, tanto no lado bom quanto no ruim, visto que as investigações têm sido feitas, e alguns figurões do establishment brasileiro já se encontram na cadeia. Algumas coisas no Brasil acabam mudando, sim, para melhor.
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