segunda-feira, 2 de outubro de 2017

A arte de furtar

Falo hoje sobre uma obra de 1652, de autoria dominantemente atribuída ao jesuíta Manuel da Costa, “Arte de Furtar”, cujo extenso subtítulo dá notícia do tom de seu conteúdo: “Espelho de enganos, teatro de verdades, mostrador de horas minguadas, gazua geral dos reinos de Portugal”. Por mais de 200 anos, a obra, publicada em Amsterdã, foi atribuída a outro jesuíta, o Padre Antônio Vieira.

Reconhecida hoje como um marco da literatura barroca portuguesa, a “Arte de furtar” pareceu-me de uma atualidade arrebatadora. Em seus mais de 70 capítulos, o autor percorre o densamente povoado mundo dos crimes — este mesmo mundo.

O capítulo 60 trata de como “furtar com unhas políticas”; o 57, de como “furtar com unhas amorosas”; o trigésimo sétimo, sobre aqueles que “furtam com mãos de gato”; o capítulo 45, sobre aqueles “que furtam com unhas domésticas”.

A sátira é, como um todo, um maravilhoso guia sobre a criminalidade: “…e digo que este mundo é um covil de ladrões, porque, se bem o consideramos, não há nele coisa viva que não viva de rapina”.

Contudo, o intento do autor, explícito em suas dedicatórias, não era senão fornecer uma descrição detalhada das figuras típicas da corrupção para o bom discernimento do governante que se vê completamente cercado de suspeitos.

Teria a Vossa Alteza, El-Rei de Portugal, as condições de emitir juízos sobre uma arte da qual desconhece mesmo a superfície? Como ficaria o sereníssimo senhor príncipe atento aos artifícios sobre os quais ignora o método? Diz o tratado: “Não ensina ladrões o meu discurso, ainda que se intitule ‘Arte de furtar’: ensina só a conhecê-los, para os evitar”.

Para além das figuras mais óbvias presentes neste “teatro de verdades”, Manuel da Costa põe em evidência também a ganância dos exploradores europeus, e de como aqueles que perseguiam riquezas não eram diferentes dos que massacravam populações do outro lado do mundo.

Esboça-se quase uma crítica estrutural do poder, e de suas ramificações, no sistema econômico da época. Afinal, para o nosso autor, a arte de furtar é uma ciência verdadeira, quase sempre a serviço do poder.

É quase desnecessário dizer, mas o Brasil colonial aparece em diversos momentos do tratado.


Manuel da Costa, ou Antônio Vieira, nunca conheceram Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara, atualmente encarcerado. Ou Sérgio Cabral, ex-governador do Rio de Janeiro, condenado a mais de 40 anos de prisão. Muito menos Geddel Vieira Lima, peça fundamental no tabuleiro do nem tanto sereníssimo Michel Temer, e seus 51 milhões de reais em notas encontrados em seu bunker na Bahia pela Polícia Federal.

Mas, excetuando-se algumas atualizações e progressos, a ciência da corrupção ainda seria familiar a ambos os jesuítas. Assim como também seriam familiares os esforços de muitos políticos poderosos, e seus cúmplices, de ofuscá-la.

Sem dúvida, muita coisa nos deixaria surpresos, suspeito eu, tanto no lado bom quanto no ruim, visto que as investigações têm sido feitas, e alguns figurões do establishment brasileiro já se encontram na cadeia. Algumas coisas no Brasil acabam mudando, sim, para melhor.

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