Baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
Carlos Drummond de Andrade
Disseram os policiais federais da Bahia que um lençol, isso, um lençol, um simples e inocente lençol, dava cobertura às caixas e malas de dinheiro encontradas naquele apartamento de Salvador. Foi na semana passada, que também calhou de ser a Semana da Pátria, poucos dias antes do feriado nacional de 7 de Setembro. A dinheirama explícita transbordava de caixas de papelão e de valises de viagem. Para contar tantas notas, os agentes policiais requisitaram essas engenhocas automáticas que se usam em agências bancárias, que operaram por 14 horas ininterruptas. Eram R$ 42.643.500,00 e US$ 2.688.000,00 (que, convertidos pela cotação oficial, correspondem a R$ 8.387.366,40). Nunca antes na história deste país uma tal quantia foi apreendida, nem mesmo em cafofos de traficantes. Um recorde, exultaram os especialistas.
Nos versos de Chico Buarque, lá se vão muitos anos, o pecado podia até ser bom. “Não existe pecado do lado de baixo do Equador”, cantava o poeta, que logo adiante convidava: “Vamos fazer um pecado safado debaixo do meu cobertor”. Já que não havia pecado, que ele fosse bom e belo.
No caso do apartamento soteropolitano, o pecado é horrendo. Não por ser ilícito, aliás. É feio esteticamente, é repugnante. As fotografias feitas pela polícia desvelam o medonho que jazia sob o lençol: o papelão desconjuntado em uma geometria estufada, balofa, com as abas desgrenhadas, a ponto de rasgar-se. As malas, pobres malas, clamavam por piedade diante da câmera, como se pudessem gritar que não suportariam transportar tanto peso, que suas costuras romperiam no caminho, como se pedissem desculpas de estar ali naquela cena vexatória. “Eu posso explicar, eu posso explicar”, imploram as malas escancaradas nas fotografias. Tudo feio, tudo sem elegância nem glamour. E pensar que sobre aquelas montanhas de cédulas sem origem e sem dono declarado havia um lençol sem sobrenome para cobrir o odioso pecado safado; um lençol sem prazer, sem encanto, sem cadeado, sem segredo na fechadura; um lençol empoeirado, quem sabe, ou mesmo imundo.
Na canção de Ruy Guerra e Chico Buarque, a safadeza tem um sentido erótico libertador: “Quando é lição de esculacho, olha aí, sai de baixo, eu sou professor”. Na cena do apartamento de Salvador tudo é o contrário. Palavras como “esculacho” ou “escracho”, agora sem erotismo, não mais significam liberdade, desejo ou paixão – significam apenas, e miseravelmente, parasitismo, rapina, perfídia, ganância, egoísmo, tudo, claro, sob o lençol da conveniência, da aparência de legalidade, das mesuras oficiais. O “pecado rasgado” encarnado naquela bufunfa não tem charme, não tem lirismo: aquilo é o pecado escarrado da corrupção.
A corrupção, no nosso caso, a corrupção ao sul do Equador, não é apenas um crime que o Estado dará conta de punir. A corrupção é método parasitário de gestão da coisa pública que, mais do que dinheiro, desvia a própria finalidade do Estado. A corrupção desvirtua as instituições e inverte o sentido da ação da política, assim como inverte a lógica da democracia. Sob a corrupção à brasileira, política e democracia se rebaixam à negação do que deveriam ser, o que é muito pior do que virar de ponta-cabeça o sentido de palavras que encontramos na poesia.
Sigamos um pouco mais com a poesia. Em A máquina do mundo, Drummond conta de uma maravilha que se abriu para o poeta, que ia desavisado a passos lentos caminhando numa estrada pedregosa de Minas Gerais. Abriu-se para ele “a máquina do mundo”, que expunha em claridades todos os mistérios da existência. Mas, como o caminhante não esboçasse ímpeto de tomar posse de tamanha aparição, a máquina se fechou, e ele foi embora “de mãos pensas”.
Sigamos um pouco mais com as inversões. Está se abrindo diante de nós, mal saídos da ressaca da Semana da Pátria, não a “máquina do mundo”, mas uma impensável e intragável máquina do imundo. Talvez seja um castigo para os poetas. Por não terem se atirado de cabeça no que de sublime se ofertara, são agora tragados por engrenagens sem luz, sem compaixão, que movem o mundo pelo que ele tem de mais abjeto. Que um lençol puído venha cobrir nossas vergonhas e os nossos sonhos mortos.
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