sábado, 26 de agosto de 2017

A banalidade do mal e o esquecimento do bem

Acostumados todo dia a receber notícias de corruptos e canalhas sem escrúpulos, de violências e direitos pisoteados, poderíamos cair na tentação de acreditar que no Brasil não há pessoas boas e honradas. Elas existem, e são a imensa maioria. São elas que mantêm o país de pé, que o fazem funcionar. Graças a elas, conseguimos viver e até manter um fio de esperança.

Enquanto crescia, aqui e no mundo, o monstro da violência, do terrorismo e dos novos nazismos, dois personagens históricos, dois pensadores, ambos mulheres, ambas perseguidas por sua condição de judias, a alemã Hannah Arendt e a húngara Agnes Heller – esta última, inclusive, sobrevivente de um campo de concentração – se transformaram em atualidade. Arendt, após ter peregrinado fugindo da perseguição, conhecedora privilegiada dos horrores do Holocausto e seus verdugos, cunhou o conceito de “banalidade do mal”. Trata-se do perigo, como ocorreu durante o nazismo, de que as pessoas comuns acabem vendo o mal como algo normal, como algo que realizamos por dever ou por simples seguimento de uma ideologia fanática. É a obediência às ordens do tirano, sem medir as suas consequências. O mecanismo que transforma em normal e burocrático os massacres e holocaustos.

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Um perigo que hoje se torna tragicamente atual, com o ressurgimento de velhas e novas ideologias de ódio e discriminação dos diferentes. Mas além desse perigo real, que a extrema-direita e as ideologias de várias tendências ressuscitam, existe outro, oposto. À banalidade do mal se opõe, hoje, o chamado “esquecimento do bem”, como se a humanidade estivesse possuída definitivamente pelo mal, sem espaços para a bondade. É o que a pensadora húngara Agnes Heller acaba de recordar a este jornal numa entrevista, em sua casa de Budapeste, ao jornalista Guillermo Altares, quando afirma que hoje, com seus quase 90 anos e depois de ter vivido guerras e exílios, de seu pai ter morrido em Auschwitz e de ela ter se salvado junto com sua mãe, a única fé que lhe resta é que, até no meio do pior inferno, continuam existindo “pessoas boas, capazes de ajudar os demais a se salvarem.”

O esquecimento e o silêncio da existência do bem podem ser, de fato, tão perigosos quanto a banalização do mal, pois acabam com as chances de esperança. Outro judeu, Sigmund Freud, pai da psicanálise, já tinha recordado, em meio aos horrores do nazismo, que o impulso da vida supera o da morte, que é como dizer que o bem acaba vencendo o mal. Do contrário, dizia Freud, o mundo já não existiria.

O Brasil também continua de pé, apesar de todos os tropeços e de todos os seus demônios, graças à grande maioria das pessoas que são honradas e trabalhadoras, que se sacrificam e sofrem sem vender sua consciência. É esse exército que, mesmo furioso com os corruptos e consciente da existência do mal, continua em seu caminho, sem se vender ao deus do derrotismo, buscando seus espaços de felicidade – sua e dos demais. Sem essas pessoas boas e normais, nosso cotidiano seria um inferno. Sem esses milhões de trabalhadores que não se vendem e geralmente sofrem injustiças e penalidades todo dia, nosso cotidiano pararia. Toda vez que acendemos uma luz, abrimos a torneira, pegamos um ônibus, compramos num mercado e encontramos nossas ruas limpas, deveríamos pensar que, por trás disso tudo, existe alguém que está trabalhando de forma honrada e silenciosa para que isso seja possível.

Todos nós já cruzamos algum dia com uma dessas pessoas generosas, capazes de ajudar sem esperar recompensa. É das pessoas boas que fala a filósofa húngara após ter vivido os horrores do mundo. Neste momento, eu não poderia deixar de lembrar que, se hoje estou escrevendo estas linhas, é porque, quando ainda era criança, uma família pagou meus estudos, o que meus pais, professores de escola, não teriam podido fazer. Uma família que não conheci porque preferiu o anonimato. São essas famílias, e não os banalizadores do mal, as verdadeiras construtoras e donas do mundo.

Que não se enganem os corruptos e violentos, pois essas pessoas boas, se quiserem, também podem se rebelar. E nada mais perigoso para os canalhas que a ira dos inocentes. O que seria, por exemplo, das pessoas abastadas das cidades brasileiras se, por exemplo, esses milhões de favelados, deixados à própria sorte, vítimas da banalização da violência, decidissem baixar em massa e incendiá-las? Não é que não haja pessoas de bem. Às vezes, frente ao mal e à injustiça que as rodeia, ao descaramento do mal, dá até vontade de pensar que são boas demais.

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