Considerando-se a normalidade insana com que a violência se incorporou à paisagem nacional — só no Rio, 632 pessoas já foram atingidas por balas perdidas este ano, 67 delas morreram, e 90 policiais foram executados no mesmo período —, a morte de um catador de lixo poderia ter sido recebida pelos moradores do bairro como mais um indigesto transtorno urbano no pedaço.
Deu-se o contrário. Diante do ocorrido, vários bípedes que tocavam suas vidas sem maior militância anterior assumiram-se como seres humanos, reconheceram-se como parte de um mesmo problema, e se puseram a agir como cidadãos dispostos a não mais integrar o quadro de decomposição social do país. Decidiram que, no Brasil de hoje, a vida ou morte de um carroceiro vale tanto quanto a de qualquer um de nós — pouco. E que isso tem de deixar de ser aceitável.
TEM QUE VIVER!, eco intuitivo, talvez, talvez do grito lançado pelos jovens americanos diante da violência policial, e que se transformou no movimento Black Lives Matter.
O carroceiro Ricardo, decidiram os envolvidos na campanha, não haveria de simplesmente sumir na “Cidade Linda” idealizada pelo prefeito João Doria.
Através de panfletos caseiros e cartazes distribuídos de mão em mão, além de convocações divulgadas por redes sociais, familiares, moradores, comerciantes e taxistas da região, foi programada uma missa de sétimo dia para a quarta-feira desta semana. Era o dia mais frio do ano, num dos locais mais icônicos da cidade: na Catedral da Sé.
Ao meio-dia, com o termômetro marcando 9 graus, uma plêiade que misturou coletivos de carroceiros, movimentos negros da periferia, moradores de rua, veteranos grisalhos de outras batalhas, foi subindo os degraus que levam à catedral para a missa celebrada pelo bispo auxiliar de São Paulo, dom Devair.
Ao pé da escadaria, uma carroça pintada de branco com a data de nascimento e morte, e o nome completo do catador de Pinheiros — Ricardo Silva Nascimento — dava vida ao morto.
No interior da igreja lotada, uma única participante deslocada portava na lapela o bóton “Fora Temer”. Ela talvez não tenha percebido que as pessoas ali reunidas não estavam em campanha política nem partidária, que, com ou sem Temer, a matança da vida brasileira é contínua, e que o retrato de um país se mede pela forma como a sociedade trata os mais descartáveis.
Ao final da celebração, ninguém ousou escapulir do frio da escadaria, pois o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, sempre a voz mais ouvida e atuante em defesa da cidadania periférica, falou a céu aberto contra a violência policial e a invisibilidade dos que o poder público não quer ver.
Quarenta e dois anos atrás, no histórico culto ecumênico celebrado no mesmo local em memória do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nos porões da ditadura, havia medo. Mas havia também a esperança de que o regime militar e sua violência seriam derrotados algum dia.
Desta vez, não houve medo. Houve desalento. Na democracia brasileira conquistada, carroceiros e cidadãos comuns continuam valendo tão pouco quanto antes e durante a ditadura.
E assim será até a faísca de Pinheiros se espalhar pela sociedade. Sem bótons ou bandeiras — apenas pela decência da vida.
Dorrit Harazim
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