Por mais que a hipótese possa parecer absurda, uma das fontes do poder oculto é a própria Constituição de 88. Nossa Lei Maior é grande responsável por mazelas, distorções e ilegalidades.
Vamos explicar. Ao abrir o leque de direitos sociais e individuais, a Constituição Cidadã construiu vigas com a argamassa da autonomia, das liberdades e das competências funcionais.
Sistemas e aparelhos se robusteceram para exercer com independência suas tarefas. Estado liberal e Estado social tiveram de convergir na direção do Estado Democrático de Direito. Sob sua égide, o Poder Judiciário assumiu posição de relevo. Hoje, exerce papel preponderante na construção de nossa via democrática.
Urge reconhecer: o corpo parlamentar deixou espaços vazios, ao não dar respostas à questões transcendentais. Como não ocupou os imensos vácuos abertos na CF, outro Poder teria de fazê-lo. É o que ocorreu e vem ocorrendo. (A propósito, compete ao Supremo afastar um senador ou autorizar sua prisão?).
Portanto, o teor crítico à judicialização da política deve levar em consideração a ausência de legislação infraconstitucional. Razoável parcela de tensões entre os Poderes pode ser creditada a essa situação.
Mas outras instituições do Estado, voltadas para a defesa do regime democrático, da ordem jurídica e de defesa da sociedade também ganharam impulso. O Ministério Público, alçado à condição de instituição essencial à função jurisdicional do Estado e com acrescida bagagem normativa, incorporou de maneira plena a missão de ser o guardião mor da sociedade. Sua atuação ganhou o respeito dos cidadãos.
Nos últimos tempos, porém, sua atuação passou a ser questionada. Razões: o excesso de exposição pública, o açodamento e pressa em suas ações, certo toque de brilho e vaidade que parece motivar a farta expressão de procuradores na mídia e mesmo uma dose de arrogância. Ou seja, discrição e comedimento são deixados de lado.
A par de decisões polêmicas como essa do Procurador Geral da República, que aceita um acordo de delação premiada por parte de um personagem que confessa uma infinidade de crimes, mas ganha o perdão por delatar a figura do presidente da República. O fato causa estranheza.
Já a Polícia Federal ganhou força como órgão encarregado de exercer a segurança pública para preservar a ordem e a incolumidade das pessoas e do patrimônio. Passou a agir em parceria com o Judiciário, mas abriu arestas com o MP, com quem parece disputar funções, particularmente no campo da investigação. Sua extensa folha de serviços, alargada por maior profissionalismo, penetra nos cantos obscuros da vida criminosa e nos porões incrustados nas malhas da administração pública. Mas também é criticada por imprimir certa camada de espetacularização nas ações que ganham nomes simbólicos – prisões, condução coercitiva, apreensão de documentos etc. Os papéis foram bem definidos pela CF, que propiciou ao aparelho do Estado a competência para organizar estruturas e métodos capazes de garantir a sua segurança e alcançar o equilíbrio social.
Outros aparelhos também fazem apurações e controles, como a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o Tribunal de Contas da União (TCU), a Corregedoria-Geral da União, além dos instrumentos do Parlamento, como a Comissão Mista de Controle sobre Atividades de Inteligência e Comissões Parlamentares de Inquérito. Em suma, o Estado possui máquina mais que suficiente para monitorar as retas e curvas das pessoas físicas e jurídicas. Mas há muitas curvas nessas trilhas.
A pletora de órgãos de controle abre imensos espaços, propiciando a interpenetração de funções e competências. Não raro, os membros de cada setor divergem, alguns se queimando no fogo das vaidades. No Estado-Espetáculo, os atores tentam, cada qual a seu modo, chamar a atenção.
E assim, o bem-estar coletivo fica sob a égide do personalismo que caracteriza a atuação dos aparelhos do Estado. Fulanos e sicranos têm seus nomes criticados ou elevados ao Panteão da Pátria. A crise que solapa a base da política afunda os participantes da esfera congressual e dá impulso a membros de outros Poderes.
O juiz Sérgio Moro e o procurador Delton Dellagnol ganham loas da sociedade. Alas e grupos se formam no interior de estruturas disputando posições. Basta ver os nomes – oito – que disputam de maneira aguerrida o cargo de Procurador Geral da República na vaga de Rodrigo Janot.
A desarmonia se expande na esteira das disputas. Os círculos de negócios avançam sobre as estruturas do Estado, formando teias de interesse, cooptando integrantes da burocracia e procurando apoio na esfera política.
A tríade descrita por Roger-Gérard Schwartzenberg mostra-se ativa: esse triângulo liga o poder político, alta administração e os grupos de negócios. Diz ele: “esses três universos cruzam-se cada vez mais, recortam-se, penetram-se”. Desenvolve-se uma simbiose. E a corrupção acaba se aproveitando desse estado de coisas.
Em paralelo, assiste-se ao declínio dos mecanismos clássicos da política: partidos sem doutrina, parlamento sem força, oposições sem projetos, aderentes/eleitores sem motivação para vida partidária.
A luz no fim do túnel deixa ver o despertar da democracia participativa, alimentada por novos polos de poder: grupos e movimentos organizados, entidades que passam a fazer pressão sobre os Poderes tradicionais. Sob essa radiografia, distinguem-se sinais, mesmo opacos, de esperança.
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