Tudo na vida do famoso Cara de Abacaxi — assim apelidado por causa das marcas de varíola no rosto — é obscuro e nebuloso, a começar pelo seu nascimento. Sabe-se que nasceu em um bairro pobre da Cidade do Panamá e que tinha origem colombiana, mas a data é imprecisa, já que ele próprio a alterou várias vezes por motivos misteriosos, de forma que podia estar com 83 ou 85 anos ao morrer. O certo é que sua carreira sinistra começou à sombra de Omar Torrijos, o cacique golpista que em 1968 depôs pela via das armas o presidente panamenho eleito e deu início, assim, à sua própria ditadura. Noriega foi seu braço-direito e fez uma carreira meteórica na Guarda Nacional até nomear a si mesmo como general. Em 1983, tomou o poder sem eleições e iniciou a sua estrambótica odisseia.
Trabalhava para a CIA e para o castrismo, recebendo dinheiro secreto de ambas as fontes. Autorizou os Estados Unidos a instalarem uma central de espionagem no istmo, ao mesmo tempo em que trabalhava como agente da DEA e, simultaneamente, para o cartel de Medellín, que escondia o seu dinheiro em bancos panamenhos. Paralelamente, fazia grandes negócios com Fidel Castro e com Moscou, aos quais vendeu cinco mil passaportes panamenhos para uso de seus agentes secretos em suas andanças pelo mundo. Chegou a ganhar certa popularidade na América Latina quando, brandindo um facão e rugindo “Nenhum passo atrás!”, encabeçou as ruidosas manifestações anti-imperialistas das suas “Brigadas da Dignidade”.
Mas em 1985, ao mandar torturar e degolar o médico Hugo Spadafora, famoso combatente dos direitos humanos, assassinato que provocou uma comoção no mundo inteiro, seu destino começou a mudar. Jurara morrer de pé, em combate; no entanto, quando da invasão dos Estados Unidos, ocorrida sem o disparo de um só tiro, saiu correndo para se esconder na Nunciatura. Ali ficou durante doze dias, submetido dia e noite a uma grotesca sinfonia de música heavy metal, que ele detestava, e com a qual os ocupantes ianques torturaram seus ouvidos até que ele se rendesse. Teve início, então, a sua longa peregrinação pelos tribunais e pelas celas dos Estados Unidos, França e Panamá, a qual se encerrou agora com sua morte.
Da longa lista de ditadorezinhos que envergonharam a história da América Latina, a grande maioria morreu em suas casas, com muito dinheiro e até mesmo sendo respeitados, depois de terem banhado com sangue e envergonhado os seus países, além de tê-los saqueado até deixá-los exânimes. O Cara de Abacaxi, um dos mais abjetos da lista, ao menos pagou boa parte de suas vilanias atrás das grades, embora, infelizmente, só tenha sido possível resgatar uma pequena parcela da fortuna que angariou com suas maldades e que seus descendentes poderão desfrutar, agora, em paz. Aliás, já começaram a fazê-lo. Aqui em Paris, os jornais destacam nesta manhã o fato de as filhas do falecido serem excelentes freguesas das lojas superluxuosas da Rue Saint Honoré.
Eu me pergunto como Nicolás Maduro encerrará seus dias: como Fidel Castro, bem protegido por sua guarda pretoriana no quartel miserável em que transformou a Venezuela, ou atrás das grades, como o general Videla na Argentina, ou como Fujimori no Peru? A verdade é que provavelmente nenhum, da longa lista de sátrapas de que a América Latina padeceu, promoveu feitos piores do que o ex-motorista de ônibus que o comandante Chávez deixou como herdeiro (para que não lhe fizesse nenhuma sombra). Ele arruinou totalmente um dos países mais ricos do continente, que hoje literalmente morre de fome, de falta de medicamentos, de trabalho, de saúde, com a inflação e a criminalidade mais elevadas do mundo, quebrado e sendo visto como alvo da repulsa e da condenação por parte de todas as democracias do planeta. Antes, só perseguia e prendia aqueles que ousavam criticá-lo. Agora, também mata, incólume. Seus “coletivos chavistas”, bandos de criminosos armados e de motocicletas, já perpetraram mais de sessenta assassinatos nas últimas semanas diante da reação corajosa do povo venezuelano que ocupou as ruas contra a ameaça governamental de substituir o Congresso por uma assembleia de servidores não eleitos, e sim nomeados a dedo, como faziam Mussolini e a URSS. A cada dia que passa com Maduro no poder, mais se agrava a agonia da Venezuela. Mas tudo parece indicar que o fim dessa via-crúcis está próximo. E tomara que os responsáveis pela hecatombe econômica e social produzida pelo chavismo, a começar por Nicolás Maduro, recebam a punição que merecem.
Os ditadores saídos dos quartéis, como Pinochet, Noriega e Videla, parecem ser de outra época, em uma América Latina que felizmente tem agora, de ponta a ponta, governos civis nascidos de eleições mais ou menos livres e onde há amplos consensos — que não existiam no passado — em favor de instituições democráticas e de políticas de abertura econômica, de estímulo a investimentos estrangeiros e à inserção nos mercados internacionais. É verdade que em muitos casos são democracias corroídas pela corrupção e que cedem, às vezes, à tentação populista, mas, mesmo assim, é preciso considerar que uma democracia medíocre e demagógica será sempre mil vezes preferível a uma ditadura, como nos fazem lembrar, todos os dias, os venezuelanos.
Por isso, é muito interessante observar o que acontece no Brasil. A extraordinária mobilização popular que já levou para a prisão uma boa parte de sua elite política e um bom número de empresários desonestos não está em busca de uma “revolução socialista”, mas sim do aperfeiçoamento da democracia, libertando-a dos aproveitadores que a estavam destruindo, destroçando-a por dentro, com alianças mafiosas que enriqueciam verdadeiras quadrilhas de empresários e políticos, boa parte dos quais já se encontram, graças a juízes corajosos e limpos, nos calabouços ou prestes a entrar neles. Trata-se de um movimento popular que vai na direção certa; que não pretende voltar ao populismo delirante que congelou Cuba no tempo e está banhando a Venezuela de sangue e de miséria, mas sim depurar e permitir que funcione plenamente um sistema que os ladrões de colarinho branco estavam desmantelando por dentro. Se obtiver sucesso, o grande Brasil deixará de ser o eterno “país do futuro” que tem sido até o momento e começará a ser um presente em marcha, modelo para o restante da América Latina
Mario Vargas Llosa
Mario Vargas Llosa
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