Recordei agora a pergunta-dilema do conde alemão – “a verdade perene ou o transitório interesse nacional?” – em razão do terremoto desencadeado entre nós pela “delação premiada” em que Joesley e Wesley Batista exibiram até uma gravação que – se verdadeira – compromete o próprio Michel Temer como presidente. Semanas antes, em entrevista a este jornal, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), havia sustentado “ser legítimo” investigar o presidente da República “mesmo por delitos estranhos ao seu atual mandato”.
O decano do STF lembrou que por duas vezes, em 1992, na época de Fernando Collor, o tribunal reconhecera a legitimidade de investigar o presidente por atos anteriores ao mandato. A imunidade temporária significa apenas que “não pode ser responsabilizado em nenhuma denúncia”. Ou seja, pode ser investigado por atos fora do governo, mas jamais denunciado à Justiça.
Surgia aí, então, o confronto entre a busca da verdade e o interesse nacional, ou o que assim é chamado. Celso de Mello é figura exponencial no STF, não por ser o decano, mas pela meticulosa ponderação, cultura, lucidez e independência. Costuma atender com rigor à norma fundamental da Justiça e das leis: buscar a verdade e, por meio dela, sanar os conflitos.
Na época, fiz a mim próprio uma pergunta impertinente, descabida e imprópria: está o Brasil em condições de conhecer a verdade profunda do poder político?
A Lava Jato desnudou a rede de corrupção na Petrobrás e daí em diante se abriram as cloacas em que se oculta a sordidez de subornos em outros setores da área federal, governos estaduais ou municipais, em conluio com empresas privadas de obras públicas.
Todos os cinco ex-presidentes da República vivos, além do próprio Temer, aparecem mencionados como favorecidos financeiramente nas “delações premiadas” de empresários íntimos do poder. Na mesma situação estão atuais governadores (até o de São Paulo, do PSDB), dezenas de senadores e deputados de diferentes partidos (neles, os líderes parlamentares do governo) e oito atuais ministros, incluídos Eliseu Padilha e Moreira Franco, íntimos do presidente. Aécio Neves (derrotado por Dilma Rousseff por pequena margem de votos na eleição presidencial de 2014) foi suspenso do mandato de senador. Estão presos ex-ministros e ex-deputados, grandes empresários, doleiros, “operadores” do PMDB, do PT e do PP e ex-diretores da Petrobrás ligados aos três partidos, alguns já condenados.
O ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral está preso por roubos hipermilionários a um Estado em dificuldades há décadas. A corrupção chegou à usina atômica de Angra dos Reis: o almirante que dirigia a Nuclebrás está preso, já condenado.
Quando a Lava Jato mostrou o roubo de centenas de milhões de dólares, a então presidente Dilma mudou, em 2015, a direção da Petrobrás e Aldemir Bendine deixou a presidência do Banco do Brasil e foi dirigir e moralizar a petroleira. Agora se sabe que meses antes o moralizador Bendine exigira R$ 17 milhões de propina para conceder empréstimo bilionário do próprio banco para financiar obras da Odebrecht na Petrobrás…
A gravação das “delações premiadas”, que a TV mostra todo dia, revela a arrogância dos corruptores. Confessam crimes como se revelassem fórmulas mágicas de concentração de riqueza. Mostram o servilismo de altos funcionários e políticos de quase todo o arco partidário, comprados como produtos de supermercado.
“Já estava virando prazer comprar alguém”, narrou Hilberto Mascarenhas, um dos diretores da Odebrecht, revelando o lado patológico do suborno, à espera de um novo Freud para desvendar o insaciável sadismo deste bizarro capitalismo.
Cada novo delator amplia a delação anterior e revela formas distintas de corromper ou de “ser obrigado” a conceder propinas milionárias. Surgem, então, os “operadores”, nova atividade em que marginais vindos do baixo crime são guindados a representantes das direções partidárias nos negócios sujos.
Por isso, vale minha absurda pergunta: estamos preparados para a verdade?
Na hipótese de que o procurador Rodrigo Janot pedisse investigar o presidente da República por ato anterior ao mandato (como admitiu Celso de Mello) e na eventualidade de que se confirmassem as suspeitas, o chefe do governo não sofreria nenhuma sanção. Continuaria no cargo como uma sombra, destituído de autoridade e da possibilidade de mandar até no trivial e rotineiro. E seria o caos!
Agora, quando o opulento frigorífico JBS carneia um boi em pleno repasto do exercício presidencial, passaríamos do caos à convulsão absoluta que nos poderia levar a inventar um salvador messiânico, tão demente como aquele que surgiu na Alemanha em plena crise, em 1933, e depois conturbou e quase destruiu o mundo.
Assim, o “interesse nacional” mais parece um dilema extraviado num labirinto e já não há como distingui-lo da verdade plena. É como se, perdidos em estrada remota, perguntássemos qual o caminho para tal lugar e recebêssemos uma resposta peremptória: na primeira entrada à direita, tome à esquerda…
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