sexta-feira, 3 de março de 2017

No Brasil todo mundo é ou será ex

Agora quem dá as cartas é o ex-vice. A ex-presidente é carta fora do baralho.

Tudo começou em 2015, quando outro ex, Eduardo Cunha, hoje presidiário, fritou a futura ex, Dilma Rousseff, na frigideira da Câmara dos Deputados e a enviou ao agora ex do Senado, Renan Calheiros, para que fosse fatiada na presença de mais um ex, o então presidente do STF, Ricardo Lewandowski, para que a liturgia da deposição fosse feita sob a égide da Carta Magna, nome chique de uma Constituição que ninguém cumpre.

Tendo recebido carta de alforria, a ex tornou-se ainda mais boquirrota do que já tinha sido e exigiu casa, comida, roupa lavada, aviões e assessores e asseclas para denunciar o golpe havido no Brasil.


Fê-lo sem mesóclises, ao contrário do sócio na presidência, que muito as aprecia. De todo modo, os dois tinham sido eleitos para aqueles cargos por votos mútuos, uma vez que vice é para isso mesmo: ajuda o titular a eleger-se e depois fica na moita.

Mas fica? Claro que não! No Brasil, vice assume! E a coisa começou ainda no século XVIII. Dom João VI jamais seria rei, mas assumiu o trono porque o irmão morreu e a mãe ficou louca.

Dona Maria I transformou-se, avant la lettre, no primeiro napoleão de hospício do gênero feminino, antes que o imperador francês, o Napoleão titular, invadisse Portugal e botasse todos para correr em 1807.

De bobo não tinha nada o vice. Começou corrigindo os escrivães. “Não, 1807, não! Esta é a data da partida. Escrevam 1808, a data da chegada, que assim fica mais bonitinho”.

No mesmo século da famosa fuga, veio a República, pois tudo é rapidinho no Brasil, onde a alegria de hoje é a tristeza de amanhã e vice-versa, e a galeria de nossos ex-presidentes foi inaugurada pelo primeiro vice. Deu-se uma troca de guarda de marechais: Floriano substituiu Deodoro.

O séquito de vices republicanos continuou, passando inclusive por João Goulart, Café Filho e Itamar Franco, até chegar a Michel Temer, que, tenhamos certeza, não será o último vice a assumir!

Cartas não mentem jamais, dizem ciganas, cartomantes e astrólogos, mas dão emprego e por isso o étimo de seu sinônimo, epístola, deu-nos a palavra pistolão, emoldurada num quadro sinistro com as letras Q.I., que no resto do mundo designa Quociente de Inteligência, mas no Brasil é o desejado acróstico de Quem Indica.

O primeiro foi Pero Vaz de Caminha, que indicou o genro Jorge de Osório ao rei Dom Manuel na Carta de Descobrimento do Brasil. O mais recente foi o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, que indicou o próprio filho para Chefe da Casa Civil.

Ao que tudo indica, somente a Carta Testamento não deu emprego para ninguém. Ao contrário, profetizava que o titular abandonaria o emprego e a vida para entrar na História. As duas coisas aconteceram, aliás.

Na carta que o futuro ex-vice escreveu à futura ex-presidente, dir-se-ia que caprichou nas mesóclises e no Latim do povo do Direito, pois enfeitou seu texto de nuvens negras com um negro véu, bem ao modo do Deus Salve a América, com o recado verba volant, scripta manent (as palavras faladas morrem, as palavras escritas são imortais).

Estas frases foram originalmente pronunciadas por um senador da antiga Roma numa época em que até seus inimigos consideravam o senado romano uma assembleia de reis.

É verdade que desde a deposição de Dilma Rousseff muitas coisas mudaram e o Brasil parou de piorar, mas quando começa a melhorar, Senhor? Será que o famoso provérbio terá que ser alterado para verba volant, scripta etiam (as palavras faladas voam, as escritas também).

Deonísio da Silva

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