Uma loteria: dobrava-me o salário, e aumentava a minha capacidade de conhecer e interpretar o Brasil, deixando de lado as limitações da antropologia acadêmica dos símbolos e dos rituais que eu praticava escrevendo para uma dúzia de colegas — metade dos quais a criticava, enquanto a outra não a compreendia.
A oportunidade de transpor parte do Brasil para a telinha permitiria alcançar multidões e ser admirado por todos, excetuando — é claro — os invejosos e ressentidos, falou de dentro de mim o meu lado igualmente invejoso e ressentido.
Dirigido por Maurice Capovilla, um realizador consagrado, e produzido pelo mestre e saudoso Fernando Barbosa Lima, então diretor da Intervídeo, ao lado de Roberto D'Avila (hoje um inspirado entrevistador) e Walter Salles Jr. (que faz parte do panteão glorioso dos cineastas nacionais), eu escrevi com a ajuda fraterna de Sérgio Augusto, outro consagrado jornalista e comentarista, dez episódios que cobriam o Brasil por ângulos singulares. Não falava de política, e muito menos de economia, mas de hábitos, comidas e do trabalho que obrigava a sair da casa para a rua. Passávamos pelas relações raciais, demonstrando o nosso clássico preconceito de não ter preconceito — conforme aprendi com Florestan Fernandes — e não deixamos de explorar as práticas religiosas. Havia, é claro, um capítulo sobre a malandragem que até hoje permite driblar as normas e a lei .
Resumo dizendo que deste programa dragado pelo tempo ficou a experiência de tentar registrar a dialética entre o oficial e o não oficial no Brasil.
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Na roteirização da malandragem, aquele fio de navalha entre o legal e o criminoso, decidiu-se visitar um presídio, esse espaço no qual malandros viravam presidiários.
Passamos o dia numa cadeia. A própria visita amedrontava, revelando como a prisão ainda é um espaço amaldiçoado porque qualquer contato direto com condenados tem o toque da contaminação, conforme acentuei na minha crônica anterior.
Desta experiência eu guardo a impressão de ajuntamento e de um claro controle do espaço interno pelos prisioneiros. Ali estava cristalizada a sociedade brasileira. Havia ricos e pobres, mandões e seguidores. Não me esqueci da cozinha especial, onde havia uma “comida” especial para certos presos. A superpopulação simplesmente salientava quem eram os “donos” e os comuns.
Naquele tempo não se falava em facções, mas elas certamente existiam. O crime — essa é uma das minhas impressões mais fortes — era desmoralizado ou simplesmente desfeito por um vergonhoso sistema penitenciário, destinado a marginalizar ainda mais os condenados. O que vi na cadeia não foi um sistema de punição, mas de castigo e vingança. Todos sabem que a opinião pública nacional considera um acinte que presos tenham direitos. Para ela, eles deveriam “pegar na enxada” e serem, como os escravos, castigados com trabalho forçado. Se você tem dúvida, faça um inquérito.
Uma última questão: quem deseja ir além das palavras fáceis para enxergar como as prisões superlotadas, controladas por bandidos, são o resultado de uma brutal desigualdade e pela total inversão do objetivo da política que, em vez de servir à sociedade da qual faz parte, faz o exato oposto e dela se serve para enriquecer a canalha que diz fazer “tudo dentro da lei?”
Resposta: ninguém!
Roberto DaMatta
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