Saber zangar-se
O que me parece é que as pessoas, em geral, como que deixaram de saber zangar-se. Deixaram de saber zangar-se com aquilo que consideram errado – e, pior ainda, deixaram de saber dizê-lo na cara umas das outras. A não ser, naturalmente, que haja uma agenda.
Ainda nos zangamos muito, é verdade. Mas zangamo-nos mal. Com a maior das facilidades nos zangamos contra inimigos abstractos, como «o Governo», «o capitalismo selvagem» ou mesmo apenas «a crise». Com a maior das facilidades nos zangamos com aqueles que entendemos como nossos subordinados, no trabalho e na vida em geral (afinal, os nossos «superiores» acabam de pôr-nos a pata em cima. alguém vai ter de pagar a conta). Com aqueles que estão, de alguma forma, em ascendente sobre nós, já não nos zangamos: amuamos, que é a forma mais cobarde de nos zangarmos. Aos nossos iguais simplesmente não dizemos nada: engolimos e tornamos a engolir, convencendo-nos de que do outro lado está, afinal, um pobre diabo, tão pobre que nem sequer merece uma zanga – e, quando enfim nos zangamos, é para dar-lhe um tiro na cabeça, como todos os dias nos mostram os jornais.
A impressão com que eu fico é que tudo isto vem dessa mania das social skills e do team building e dos demais chavões moderninhos que os gurus dos livros de Economia nos enfiaram pela garganta abaixo, na intenção de nos automatizarem de vez. Resultado: andamos todos a rebentar por dentro, impossibilitados de rebentar para fora – e, quando enfim explodimos, já não há nada a fazer. No essencial, os que nos rodeiam nunca são apenas homens, com valências e lacunas, com cobardias e actos de coragem: ou são anjinhos ou são tremendos filhos da puta (assim mesmo, sem meio termo). «Não respondas», aconselham-nos os sábios. Não dês troco. Não ligues. Não percas a cabeça. Tens de ser superior. E, inevitavelmente, viramos todos uns diplomatazinhos de esquina, sem capacidade para dar um grito e a seguir fazer as pazes. Tornamo-nos ainda mais hipócritas do que aquilo a que a nossa contraditória condição já nos obrigava. E transformamo-nos, claro, em bombas-relógio.
Pois eu prefiro um homem que parte a loiça a um choninhas que sublima tudo e, no final, ainda me passa a mão pelo pêlo. Quem não é capaz de zangar-se também não é capaz de uma gargalhada – e, se nos zangamos com ele, o primeiro argumento racional que utiliza é: «Não sejas assim.» Mas que diabo é isso, «não sejas assim»? «Assim» capaz de assistir a um automóvel que se encaminha para uma ravina sem dar um grito a acordar o motorista? «Assim» capaz de ver uma relação pessoal deteriorar-se sem dar um murro na mesa para tentar salvá-la? É «assim» que gostavam que nós fôssemos todos, cheios de competências sociais e. porém, completamente desprovidos de frontalidade, de coragem e de zelo? Não contem comigo. Só isso: não contem comigo.
Joel Neto, escritor português em 'Banda Sonora para um Regresso a Casa'
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