Como o mundo é mais marcado pelos retornos do que pelos avanços, não seria exagero sugerir que a equação entre política e falsidade; ou entre política e hipocrisia, encaixa-se em sistemas de viés aristocrático. Neles, a mobilidade é lida mais como fruto de compadrio maquiavélico do que como mérito. Daí, o papel da malandragem e da mentira com suas vergonhosas consequências como estamos sofrendo nesta chamada “crise”, que é tão brasileira quanto o carnaval, o você sabe com quem está falando e a feijoada.
O ato político que divide resulta de sistemas nos quais o discordar é tão central quanto o bom senso – essa difícil arte de respeitar a opinião contrária, honrando a liberdade individual sem perder, entretanto, a capacidade de dizer não a si mesmo.
No domingo, 17 do corrente, aconteceu um rito político fora do comum. Testemunhamos em tempo real a votação do prosseguimento ou não do impeachment da presidente Dilma Rousseff. O inusitado foi o voto numa situação em que existiam duas possibilidades. Em outros termos, todos – o baixo e o alto clero, os de direita ou de esquerda, os radicais e os liberais – eram obrigados a tomar um partido, Ora, se o “político” se define também pela indefinição, pelo adiamento ou pelo ocultamento, vimos um ato contrário a toda a nossa índole pública. Nele, cada um dos 500 e tantos deputados tinha não só um tempo limitado, mas – muito pior que isso – era obrigado a dizer de que lado estava. Era, coisa rara e típica nos impedimentos, como uma confissão ou um juramento.
Vários amigos e pelo menos um querido e consagrado cronista, Ancelmo Gois, perguntaram-me por que grande parte desse meio milhar de políticos “dedicou” seu voto invocando tanto a família, quanto Deus – sem esquecer suas cidades, Estados, a Constituição e a democracia. Uma tabela publicada no The Economist(edição do dia 23) mostra a distribuição claramente, endossando um cenário muito menos carnavalesco do que pensa a nossa reação mais emocionada. Sem, é óbvio, deixar de mencionar os infelizes e intoleráveis elogios à violência e à tortura.
A invocação de Deus é mais do que rotineira no Brasil. Juramos por Deus em muitas situações e neste contexto inusitado do sim ou não, nada mais brasileiro do que usá-lo como garantia e escudo. Além disso, não se pode esquecer que o ritual para decidir sobre um processo de apuração da verdade era presidido por um indiciado e, pior ainda, contra um governo dito de esquerda e popular. Um governo que conseguiu promover, pelo erro político e pela roubalheira, um desastre econômico sem precedentes.
Ao lado da invocação divina, vem a afirmação hegemônica de que todos os deputados são gente boa e de família. Filhos dispostos a brigar pelo nome sagrado de nossas mães e esposas. A invocação da casa revela como ainda lemos a nós mesmos como um coletivo constituído muito mais por sangue e carne, do que como uma comunidade feita de leis, projetos e escolhas. Pode-se denegar um partido, mas não a filiação e a paternidade.
Neste drama do sim ou não, vi a aflição e o surto do malandro obrigado a recolher sua lábia para, forçosamente, declarar o seu lado. E do radical a revelar-se emparelhado com a morte, a violência e a tortura. Foi uma minoria que julgou não a pessoa, mas o papel e o seu lado institucional, e que exprimiu seu constrangimento diante dos paradoxos políticos ali concretizados com elegância.
Mas a verdade inescapável foi voltar a enxergar como o ritual funcionou como um espelho de nossa vida social. Em tempos de Collor, não havia bancada evangélica e quem estava no poder era a chamada “direita corrupta”. Hoje, um Deus impessoal é muito mais popular e a corrupção, infelizmente, trocou de lado.
Em geral, consternei-me com a penúria das invocações. Mas, sejamos justos, o que sairia se juntássemos meio milhar de jornalistas, professores, militares, clérigos ou doutores?
Para mim, com tudo o que deixou a desejar, esse ritual foi muito melhor do que o poço de demagogia e de incompetência que o motivou.
Uma crise tão brasileira quanto o carnaval, a feijoada e o você sabe com quem está falando?
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