terça-feira, 29 de março de 2016

Achar a porta que esqueceram de fechar

O poeta Paulo Leminski versejou a hipótese de que “por detrás de uma pedra”, poderia surgir “toda a primavera”.

Assim são as crises. É certo que podem levar as sociedades a retrocessos e ao abismo. Contudo, delas pode também surgir um futuro melhor.

Compreender a complexidade da atual crise brasileira, em seus múltiplos aspectos, seria um bom começo.

A economia perdeu fôlego, a recessão se avizinha, aumenta o desemprego, a inflação quer voltar a galopar, o investimento encolhe, os consumidores adiam compras não essenciais, cai a arrecadação fiscal. Tempos difíceis.

Os indicadores sociais são alarmantes: apesar dos processos positivos de distribuição de renda e inclusão social, o país continua um dos campeões mundiais de desigualdade, e os progressos realizados em anos recentes estão ameaçados e em plena regressão; a violência contra mulheres, negros, pardos e homossexuais alcança índices demenciais; as condições de vida de muita gente continuam deploráveis, e a negligência com que isto foi encarado por anos explica o vulto das epidemias de dengue e da zika.


A crise política, expressão destes desequilíbrios, tornou-se fator acelerador dos mesmos. As eleições de 2014 não apontaram rumos construtivos. A presidente eleita reiterou o estelionato eleitoral praticado por Sarney, Collor e FHC. Promessas não cumpridas, fazendo recordar um pensador cínico, segundo o qual os humanos teriam inventado as palavras para melhor disfarçar o pensamento. Dilma perdeu em todos os lados — decepcionou os seus e não sossegou as oposições. Um mato sem cachorro.

Para agravar o quadro, introduziu-se o inquérito da Lava-Jato, desvelando o que todos sabiam a olho nu, mas sem provas. O sistema político está corrompido até a medula. Os lambuzados do PT aparecem com mais evidência, pois controlam o poder há mais de 12 anos e se esmeraram, de fato, em manter relações carnais com os grandes bancos e empreiteiras. Entretanto, é preciso muita miopia — ou má-fé — para não enxergar que, de alto a baixo, “está tudo dominado”. O rei está nu, e todos estão vendo. Criou-se uma imensa vala na qual estão caindo os partidos e respectivos marqueteiros.

Vai dar para sair do buraco?

Alguns, à direita do espectro político, na ofensiva, imaginam como saída cortar algumas cabeças, entre as quais as de Lula e de Dilma Rousseff. De quebra, expulsar o PT do proscênio. E já começam a bater e a agredir pessoas nas ruas. A luta contra a corrupção o exigiria. Mas um tal programa só seduz mentes mais simplórias. Basta ver quem substituiria os eliminados — os Cunhas, os Renans, os Temers, os Aécios, os Alckmins... Basta comparar as listas dos doadores das campanhas eleitorais. A da Odebrecht e as demais que circulam entre segredos mostram bem o “mar de cumplicidades” que contamina todas as praias.

Na defensiva, os petistas e vários pensadores afins mobilizam o fantasma de 1964. Cinquenta anos depois, transmudada, a Besta estaria de volta. Soprando o pó de velhas bandeiras, gastas por desuso, retornam com bandeiras vermelhas às ruas, esquecendo-se de que a cor da guerra social não combina com negócios escusos tramados em hotéis de luxo.

É falsa a polarização entre os “caçadores de corruptos” e os agitadores do fantasma de 1964. Substituir Dilma por Temer é trocar seis por meia dúzia. Não se pode nem dizer que, se o “seis” sair, o “meia dúzia” se corromperá, pois o “meia dúzia” já está corrompido.

Para ter um princípio de resolução, e de superação, a crise de muitas faces e cabeças precisa ser enfrentada pelo seu elo decisivo — o sistema político, que acoberta e incentiva a corrupção em grande escala.

É o sistema, como um conjunto, que precisa ser mudado. O fim do financiamento eleitoral e partidário por parte de empresas, combinado com um teto para as doações das pessoas físicas, foi um primeiro passo. Diversas outras propostas reformistas circulam na sociedade. Limito-me a enunciá-las: revogação das imunidades para crimes comuns, que fazem dos dirigentes políticos uma aristocracia acima da lei que é válida para todos... menos para os próprios. Extinção dos financiamentos estatais para os partidos políticos — que os partidos se financiem por seus filiados e eleitores. Fim dos privilégios descabidos que cercam as atividades político-partidárias: remunerações, comissões, subsídios. Pepe Mujica tem razão: quem quiser enriquecer, que se dedique aos negócios, e não à política. Redução dos mandatos, para elevar o nível de controle dos representados sobre os representantes, com extinção da reeleição para os cargos executivos.

Definir e defender uma real e profunda reforma política é o desafio para que existam eleições capazes de abrir novos horizontes democráticos. E, retornando ao poeta com que comecei esta crônica, “achar a porta que esqueceram de fechar, o beco com saída, a porta sem chave, a vida”.

Daniel Aarão Reis

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