Médicos não podem trabalhar sem diploma e registro em conselhos profissionais. E as acirradas polêmicas do século XIX sobre a obrigatoriedade da vacinação e proibição de produtos e substâncias nocivas versus o livre arbitrário ficaram para trás. Um mercado aberto e competitivo na saúde, que reúna vendedores e compradores de serviços e produtos para prevenção e cura, é uma miragem.
No dia a dia, os mais ardorosos defensores do equilíbrio entre demanda e oferta se desfazem da teoria do melhor custo-benefício sem a menor cerimônia. Aos primeiros sinais de adoecimento, ou mesmo para consultas rotineiras, correm em busca da excelência, de médicos formados e que estão vinculados a instituições e universidades públicas. Tudo muito bem regulamentado pelo Estado; e não deixam e pedir recibo para abater os gastos do Imposto de Renda.
No entanto, a reiteração da dicotomia público-privado desencadeia um crescente ceticismo na capacidade de intervenção governamental e estimula a preferência pelas alternativas baseadas na lógica do mercado, expressas em malsucedidas tentativas de salvaguardar a saúde de influências políticas. Como se a política pudesse ser colocada em quarentena. Claro que não pode, tanto que a saúde vem sendo invadida justamente por aquelas vertentes políticas, quase caricaturais.
As desastradas recomendações para as mulheres em idade fértil do atual ministro da Saúde ou a denúncia de contratação de um vereador (onipresente) pela empresa que faria uma gestão eficiente, sob a lógica do mercado de hospitais, refletem um preocupante afastamento da saúde pública das agendas de inovação, modernização e igualdade social. A comparação entre os currículos de ministros das área econômica e de saúde, quer se concorde ou não com suas ideias, esclarece qualquer dúvida a respeito da condição periférica do setor. A analogia vale para alguns estados e municípios. Quem se lembra do nome dos últimos secretários de Saúde do Rio de Janeiro, a não ser de quem foi acusado de desviar recursos? A caracterização da saúde como um negócio como outro qualquer, ironicamente, abre alas para o atacadão de interesses políticos particularistas. Gurus gerencialistas e seus sempre renovados clichês desenvolvem esforços e agitações respeitáveis.
Contudo, as promessas revolucionárias de poupar gastos desnecessários na saúde não deram certo em lugar nenhum. Acumulam-se evidências sobre a fragilidade de diversas fórmulas tecnocráticas de pagamento de médicos e hospitais e sobre propostas ingênuas de políticas saudáveis. Métodos e valores de remuneração de procedimentos embutem relações de poder. E todos morreremos, ainda que possivelmente mais velhos, menos doentes e mais autônomos, mas necessitando, ao longo da vida, de cuidados de saúde, sejam curativos ou paliativos.
O radicalismo dos jargões e o foco apenas em determinados aspectos administrativos impedem uma visão clara dos potenciais e entraves do conjunto do sistema de saúde. Graças à combinação da atuação política e mobilização de conhecimentos científicos e técnicos, o Brasil realizou uma reforma profunda na saúde. O SUS não é uma construção político-institucional trivial, e os problemas crônicos da saúde não decorrem de seus erros, e sim de sua não implementação.
A insistência na propaganda e nas ações centradas apenas nos focos domésticos de mosquitos, e não nos criadouros gerados pelas condições sanitárias; a “entrega de chaves” de hospitais públicos, como se fossem prédios comerciais, para outra esfera administrativa; a deterioração do programa nacional de imunizações, que precedeu e foi ampliado pelo SUS, são maus prenúncios. Instituições, redes sociais e entidades comprometidas com o desenvolvimento social não podem assistir de camarote ao isolamento político, à mediocridade e aos erros técnicos na saúde. A próxima reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social deve encorajar a inclusão de pontos sobre saúde na pauta, espera-se coerência de fóruns cujos nomes conectam políticas sociais e econômicas. O controle e tratamento da dengue, chicungunha e zika, o monitoramento das iniciativas do gabinete de crise no Rio de Janeiro e a avaliação pormenorizada da irregularidade e falta de fornecimento de vacinas requerem análises à altura do que o Brasil pode realizar.
Saúde é um desafio democrático, refere-se à plausibilidade dos compromissos e compatibilidade dos recursos alocados para os efetivar. Nas eleições municipais de 2016, a política de saúde e o SUS podem ser resgatados desde que liberados do confinamento e dos modismos, achismos e pilhagens.
Ligia Bahia
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