segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A agonia de Dilma, e a encenação grotesca da política

Para quem gosta de encenações ridículas, a crônica política está um prato cheio. Não digo encenação no sentido de que tudo é previamente combinado – não é, tem gente realmente desesperada para salvar a pele, e alguns mais sortudos (e/ou com mais sangue frio), doidos para puxar o tapete alheio. Digo encenação mais no sentido de que quase todo mundo perdeu o timing da (senão elegância) compostura. E está mostrando as vísceras, políticas e emocionais, num espetáculo de péssimo gosto. Que só pode ser visto como comédia ácida.


Nos últimos dias, vimos performances bizarras como a da tropa de choque de Cunha na Comissão de Ética, que age como se fosse possível salvar não só o mandato como a presidência da câmara para o deputado. É evidente que em algum momento Cunha vai cair – mas ele está possuído por um transe de se manter a qualquer custo, ao invés de pedir o chapéu e ir tratar de sua defesa (ou mesmo escapar do país, antes que seja preso).

O problema é que a desfaçatez da tropa tem conseguido destemperar os desafetos, como o deputado petista Zé Geraldo, que por pouco não protagonizou um pugilato com o agente provocador Wellington Roberto, do PR. A impressão (imprecisa) que é passada para o “público” é que Cunha é um vilão de novela, que se prolongará no cargo segundo as necessidades do roteiro – e não a força da lei. Até interessa para Dilma sustentar essa visão sobre o “vilão”, para jogar fumaça na dubiedade moral da sua própria posição. Mas reforça a percepção das pessoas de que vivem em um roteiro ruim.

Uma outra cena bizarra foi a da ministra Kátia Abreu, jogando um copo de vinho na cara do senador José Serra num jantar de confraternização de lideranças políticas, na casa do senador Eunício Oliveira. Mais bizarra ainda porque não foi decorrência da tensão política (pelo menos diretamente), mas de uma “brincadeira” sexista que Serra fez, chamando a ministra de “namoradeira”. Serra é conhecido por ser inconveniente. Por um lado, tem sim uma certa graça feminista uma figura autoritária (e normalmente um tanto sem noção) tomar uma atravessada dessas. Mas, por outro, ver o “público” de esquerda saudar irrestritamente Kátia, líder ruralista desmatadora e conivente com o assassinato de indígenas, também parece um erro de interpretação de sinais.

Finalmente, o vexame mais ambivalente: a carta do vice presidente a Dilma, “vazada” na última segunda feira. Por um lado – e por seu tom – foi tratada como mimimi do vice, referindo-se a episódios menores e de uma maneira patética, que não deve ser usada em manifestações políticas. Mas cumpriu bem sua função, ou funções. Uma delas era cortar a ressurreição midiática ensaiada por Ciro Gomes, usando do mesmo artifício que seu irmão Cid em março, quando saiu do governo acusando a submissão de Dilma à base aliada, particularmente à quadrilha de Cunha. Ciro, espertamente, estava tentando se inserir no espaço entre Lula e Dilma, desqualificando o ex-presidente nas entrelinhas e fazendo críticas a Dilma. Mas colocando-se como defensor (e eventual herdeiro) da legalidade, enquanto acusava Temer de ser o “capitão da traição”. A carta de Temer teve o condão de mandar Ciro de volta para o limbo.

Outra função da carta foi emitir sinais para o PMDB: na revolta no processo da formação da comissão parlamentar do impeachment, que o governo tentava controlar e, ontem, na deposição do ex-líder do PMDB, Leonardo Picciani, que trabalhava contra Temer e a favor de Dilma. O custo de ser ridicularizado em centenas de memes parece pequeno para Temer, diante da enquadrada que conseguiu dar na conjuntura caótica. Tenho a sensação (não há como saber) que Temer usou esse tom mesquinho de DR (discussão de relacionamento) intuitivamente, para dar uma feição de motivação humana à ruptura com Dilma. Acabou acertando num outro aspecto: fica claro nas entrelinhas a arrogância petista, a disposição de tratar aliados com desprezo – e depois correr atrás deles de maneira errática, quando a corda aperta.

E aqui chegamos ao que pode ser o cerne desta conversa. A construção dessa situação alucinatória certamente passa pelo psiquismo petista – ou pela doença do psiquismo petista. O PT deixou de ser um partido para ser uma igreja, uma seita. Desde sua atividade como oposição a demonização dos adversários políticos era uma recorrente. Mas, dada a empáfia das “elites” locais, parecia fazer sentido. Era um esforço para romper graves barreiras de preconceito.

Mas, porque, como corretamente reclama o petista histórico Frei Betto, a chegada do PT ao poder não correspondeu a uma flexibilização mais generosa desse psiquismo? Porque a escolha política recaiu em tentar comprar a fidelidade do fisiológico PMDB e das legendas de aluguel (digo “tentar” porque essa escória vende, mas não entrega)? Porque a escolha econômica consistiu em pinçar e turbinar seus próprios magnatas (como se vê no caso do banqueiro preso, André Esteves, do empreiteiro preso, Marcelo Odebrecht, e do folclórico e catastrófico Eike Batista)? Porque recolher do lixo histórico Collor, Sarney, Maluf, Barbalho, com um gostinho perverso? Porque radicalizar só no discurso sectário, ao mesmo tempo que reproduzia os piores comportamentos de seus adversários?

Evidentemente a corrupção não foi inventada pelo PT. Acharemos paralelos das negociatas nos governos anteriores. Mas há duas diferenças. A primeira, é que o PT foi nominalmente eleito para atacar os tiozões estupradores acaju da política – não para compor com eles. A segunda é que, em seu esforço para substituir a “elite anterior”, o PT foi montar sua própria versão de “elite” em um plantel de ladrões de galinha, pastores hipócritas, ministras assassinas de nossa matriz étnica, destruidores irresponsáveis do que restou do meio ambiente, corruptos e corruptores de extrações variadas. A lama e a doença, em sentido literal e metafórico, não saíram do nada. Saíram de nossa caminhada rumo ao descontrole absoluto e irresponsável.

O governo do PT fez todas as entregas que podia ter feito até a segunda gestão de Lula. A escolha de Dilma, uma figura com uma certa esquizofrenia (supostamente uma gerentona, mas submissa a Lula) já foi um erro demagógico em si mesma. Assim como rompeu relações históricas e algumas convergências ideológicas com FHC, para explorar um ódio de classe quando era conveniente, um “nós contra eles” ressentido, stalinista e antiético, a campanha violentíssima contra uma ex-petista e ativista digna, Marina Silva, levou esse jogo a um beco sem saída final. O beco sem saída em que o país se encontra é o beco sem saída do psiquismo petista – e é ridículo sermos capturados por esse transe tosco.

Nos últimos dias, políticos de extrações absolutamente diferentes, como Ronaldo Caiado e Luciana Genro, andam falando em formas de zerar o jogo, com renúncias coletivas do governo e do parlamento. A reação dilmista à fala de Luciana foi a pior possível – vi gente conhecida afirmar, com todas as letras, que era surpreendente Luciana estar sendo, esta semana, mais “decepcionante” do que Kátia Abreu, a valente. Kátia se assemelha muito a Dilma: são mulheres, mas mulheres totalmente comprometidas com valores patriarcais, como a repressão (expressa na lei antiterrorismo), a destruição da natureza e o desrespeito por populações não inseridas totalmente na lógica do consumo. Não é à toa que se adoram.

Não sou fã de Luciana Genro. Acho suas concepções marxistas um resíduo do século passado. Mas respeito seu esforço em pensar neste momento com alguma clareza não-sectária, em escapar à agonia petista, e a uma situação que se torce e se retorce sobre si mesma, rumo a coisa nenhuma. Porque, com Dilma e o PT, simplesmente não há como aguentar mais três anos. Ainda que com sinais supostamente invertidos nessa narrativa ruim, Cunha e Dilma estão brigando pela sobrevivência impossível.

Faça uma checagem: se você estiver bradando ‘golpe’, você pode estar contaminado.

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