Somos doces, quase melados. É, dizem, nossa herança portuguesa. Caetano Veloso e João Pereira Coutinho duelam sobre Israel/Palestina. Aparentemente, divergem em tudo, menos nos bons sentimentos. De fato, estão de acordo sobre o ponto crucial: partindo de premissas simétricas, descartam a paz pela partilha da Terra Santa em dois Estados. Fazem propaganda de guerra. Suavemente.
Na sua crítica, Coutinho (Folha, 10.nov) explica que é inviável trocar terra por paz pois "a parte árabe sempre recusou essa troca". Como prova, oferece uma visita cuidadosamente truncada à história do conflito, que poderia ser subscrita por Netanyahu. Lá estão o Plano de Partilha da ONU, o Nasser dos "Três Nãos" e o Hamas. Mas, nela, desaparece a pulsão expansionista do sionismo, tão antiga quanto o rejeicionismo árabe-palestino.
Do mapa de Israel comissionado por Ben Gurion, em 1949, que apagava os nomes árabes da topografia da Terra Santa, aos manuais escolares israelenses, que exibiam os palestinos como nômades do deserto, desenrola-se uma etapa dessa história. Das colônias judaicas nos territórios ocupados à anexação da porção árabe de Jerusalém, e dali à incorporação dos arautos do Grande Israel aos gabinetes de Netanyahu, desdobra-se a segunda etapa. Dizer que "a parte árabe" sempre recusou a partilha é tão verdadeiro (ou falso) quanto retrucar que "a parte israelense" sempre a recusou.
Desde 2000, quando Sharon oficiou as exéquias dos acordos de Oslo, Israel congelou as negociações, alegando a ausência de interlocutores legítimos. "Os palestinos são terroristas" –o álibi de Netanyahu emerge na invocação de Coutinho sobre "o que aconteceu em Gaza". Mas a retirada de Gaza não era um passo no rumo da paz pela partilha. Sharon, não tão cândido quanto Coutinho, jamais ocultou que sua iniciativa unilateral era o componente inicial de uma "paz dos vencedores" baseada na anexação de Jerusalém e de vastas áreas da Cisjordânia. Sharon fazia política, falando para israelenses; Coutinho faz propaganda, falando para brasileiros.
Caetano (Folha, 8.nov) usa as vozes de outros para narrar a sua própria conversão. No início, ele está com o Breaking the Silence, que contesta a ocupação; no fim, adere ao BDS, que contesta a existência de Israel. A violência da ocupação aparece, no começo, como expressão das políticas israelenses; depois, como o fruto envenenado da própria natureza do Estado judeu. Na conclusão, o texto celebra a memória de Yeshayahu Leibowitz –mas de um modo ligeiro, que o reinventa como pioneiro do BDS. O Leibowitz real, um judeu puritano, um libertário inflexível e um sionista de primeira água, alertava sobre os efeitos desastrosos da ocupação sobre a democracia israelense para pedir uma paz em dois Estados. Já o Leibowitz caetanizado detectou "aspectos nazistas na política do país" e traçou o "paralelo Israel/África do Sul" para sustentar um adeus definitivo a Israel.
"Apartheid", "nazismo". Caetano reprova as "formas altivas de intolerância" dos "garotos militantes" do BDS, mas salpica seu adeus com as senhas que eles utilizam. Ele conta que, entre shows e ensaios, "redobrou as pesquisas" sobre o conflito na Terra Santa, mas parece nunca ter acessado os documentos do BDS, disponíveis na internet. Se tivesse feito a lição de casa, saberia que a erradicação de Israel é, realmente, o objetivo político do movimento, não um boato difundido por sindicalistas brasileiros ultraesquerdistas. Mas, nesse caso, sua peça de propaganda seria menos persuasiva.
A propaganda eficaz é uma espécie singular de mentira, erguida com os tijolos da verdade. Coutinho e Caetano completam-se mutuamente. Lendo um, tenho vontade de concordar com o outro –e vice-versa. Eles não precisam polemizar: no fim do arco-íris, abraçam-se na rejeição à única fórmula de paz em Israel/Palestina.
Nenhum comentário:
Postar um comentário