segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Precisamos falar sobre capitalismo

No Brasil, pouca gente sabe definir o que é, mas muitos odeiam o capitalismo. O Instituto Millenium (ONG dedicada a promover os valores da liberdade, democracia e economia de mercado), um dia desses, colocou uma pessoa na Cinelândia, Centro do Rio de Janeiro, perguntando aos transeuntes o que pensavam sobre o assunto. Três de cada quatro entrevistados ficaram nervosos com a pergunta, recuavam temerosos do microfone, ou resmungavam desconfortos variados como “aqui no Brasil não tem isso não”, “sei não senhora” e que tais.

O restante das respostas, inclusive de uma professora do ensino médio, refletiu o que se esperaria obter de uma região outrora conhecida como a “Brizolândia”.

Em um belo livro recentemente lançado (“Capitalismo: modo de usar”), Fábio Giambiagi concentra esta mesma mensagem na sua epígrafe, uma fala de Fernando Henrique Cardoso dirigida a Arminio Fraga antes de sua sabatina no Senado como parte de sua nomeação para a presidência do Banco Central. Sem pretender precedência, registro apenas que ouvi este conselho igualzinho nas duas ocasiões em que fui sabatinado. Eis a sabedoria: “o Brasil não gosta do sistema capitalista. Os congressistas não gostam do capitalismo, os jornalistas não gostam do capitalismo, os universitários não gostam do capitalismo”

Como explicar essa estranha hostilidade ao sistema econômico que prevalece em todo o planeta, excetuadas algumas comunidades primitivas isoladas no Caribe e na Ásia, e cujo indiscutível e extraordinário sucesso aniquilou qualquer concorrência?

Afinal, o capitalismo é o sistema econômico baseado na propriedade privada, na liberdade de empreender, na letra da lei, e na centralidade do mercado para estabelecer os preços. Que há de tão errado com isso?

O fato é que são reveladoras as respostas ouvidas na Brizolândia.

Em primeiro lugar, destaque-se a apatia, muito provavelmente incentivada por valores nossos, mal cultivados. Hierarquias e privilégios parecem mais naturais no Brasil que a igualdade diante da lei e a impessoalidade. Valores “maiores” parecem prevalecer sobre os da contabilidade ou da sustentabilidade: os balanços fecham no Palácio, os patrimônios “não têm preço”, prejuízos “não importam”, e a criatividade permeia partidas dobradas. E por fim, o mercado, a meritocracia e a competição, são coisas para nossos inimigos, pois é o que se passa na “rua” e não na “casa”, como ensina Roberto DaMatta.

Em segundo lugar, trata-se do sucesso do capitalismo como se houvesse dúvida sobre isso. O próprio Marx, em seu famoso manifesto, em 1848, as eliminou ao afirmar que “a burguesia, em seu reinado de apenas um século, gerou um poder de produção mais massivo e colossal do que todas as gerações anteriores reunidas”. O erro estava em prever o colapso do sistema, ou exagerar nos efeitos colaterais.

Sobre desigualdade, é preciso cuidado com um sofisma muito comum. O progresso material não é igual em diferentes regiões do planeta, ou mesmo dentro de um país. Muitas regiões do continente africano vivem hoje do mesmo jeito que viviam há 500 anos, e nessa ocasião os nativos da região hoje conhecida como a Califórnia estavam nesta mesma faixa de renda. Em nossos dias, diante da brutal diferença de bem-estar entre essas regiões pode-se distinguir ao menos dois tipos de reações: de um lado, os que se encantam com o desenvolvimento californiano e procuram emular seus valores, e, de outro, os que afirmam que esses 500 anos de capitalismo aprofundaram a desigualdade (fato estatístico indiscutível, eis que uma das regiões simplesmente ficou estacionada) ou que, um tanto mais canhestramente, os californianos ficaram ricos explorando os africanos, ou os mexicanos. Ou seja, o vilão é quem deu certo, e o sucesso é sempre pecaminoso, segundo a Brizolândia.

O fato é que, contrariamente aos países onde as virtudes burguesas — empreendedorismo, parcimônia, iniciativa e integridade — são louvadas, nosso capitalismo meio patrimonialista sempre foi visto como um jogo de cartas marcadas, onde os valores a cultivar eram outros: conexões com o governo, imprevidência, reservas de mercado e malandragem.

Um “capitalismo pela metade” pode produzir um sucesso pela metade (ou um “meio fracasso”, um país eternamente do futuro), com distorções imensas, como ocorreu no Brasil dos anos 1980, e mesmo um retrocesso, como na Argentina. As nações podem simplesmente fracassar.

Em um famoso discurso no Senado em junho de 1989, o senador Mário Covas, um homem de centro-esquerda e inatacáveis credenciais nacionalistas, proclamou que o Brasil precisava de um “choque de capitalismo”. Era um desabafo a propósito da democracia que ele tanto lutara para reconstruir, e que vivia, naquele mês, uma inflação de 28,6%. A democracia não deveria levar o país à insensatez econômica. Covas disputava a presidência, e no primeiro turno obteve apenas 11,5% dos votos, ficando em quarto lugar. Em dezembro, quando ocorreu o segundo turno, a inflação rompeu oficialmente a barreira da hiperinflação: 51,5% naquele mês.

Covas estava correto em que havia algo de muito errado nesse nosso “anticapitalismo” patológico e fora de época, mas o paciente não estava convencido do tratamento. Ainda era forte a demanda por mágica.

Diversos choques se seguiram, mas o de capitalismo só avançou mesmo com o “não choque” representado pelo Plano Real e suas reformas: privatização, responsabilidade fiscal, abertura e as outras que, em seu conjunto, trouxeram a inflação brasileira para níveis de primeiro mundo. Quem poderia imaginar que o sucesso do Plano Real seria o resultado de reformas com o intuito declarado de fazer do Brasil uma economia de mercado por inteiro?

Não obstante, as reformas enfrentaram enorme resistência, esta é a maldição da Brizolândia: uma minoria de perdedores do processo de modernização é sempre capaz de bloquear o que é novo, pois a maioria beneficiada permanece mergulhada na apatia. Os ganhos são dispersos, e os custos concentrados em minorias despojadas de seus privilégios, o velho problema das reformas, e a razão pela qual elas são implementadas por estadistas e não por “gerentonas” ou líderes populistas.

É caprichosa a História, que organiza uma volta ao passado pela ascensão de um líder operário, a quem coube interromper o avanço do capitalismo no Brasil antes que começasse a modernizar demais as coisas. O Brasil mergulha num conservadorismo metido a progressista, cuidadoso e inercial no início, mas que adquire uma feição mais concreta já mais perto de 2008, quando entramos para valer num capitalismo companheiro, ou de quadrilhas e boquinhas.

Não é a inflação que explode, mas a corrupção, uma outra expressão para o fracasso desse capitalismo “pela metade” sobre o qual não vale a pena gastar nem dois tostões de sociologia. Que o digam Joaquim Barbosa e Sergio Moro. Bobos fomos nós em levar a sério a “nova matriz” e outras ridículas vestimentas heterodoxas de que se serviu o cronismo caudilhesco que aqui se implantou. Não era keynesianismo, nem estruturalismo, mas apenas desonestidade, inclusive intelectual.

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